sábado, 28 de outubro de 2006

Depois do fim e depois do início
Que raio de lucidez é essa? Que me faz ser compreensiva quando a alma a quem desejo entregar a minha está completamente presa à outra?
Enquanto puxo intensamente o cabresto do instinto feminino em discorrer e enviar palavras melosas, dramáticas, com um toque peculiar do mais nauseante romantismo para um, pedaços disformes de um coração despedaçado escorrem pelo ralo de minh’alma e desembocam em movimento de contra-fluxo no brilho de meus olhos quando encontro outro. Nenhum deles desafia-me. Ambos são completamente passíveis às mais puras convenções dos relacionamentos menos convencionais: o depois do fim e o depois do início.

O moinho que toca suas hastes lentamente sobre o rio dos dias começa a rodar em sentido contrário e joga para o alto, com suas espátulas gigantescas, toda a compreensão rotineira do passar das horas. Mas o tempo é implacável, meus amigos, e, para toda tentativa de mudança de sentido, nada que um escorrer embrutecido de uma seqüência semanal não obste as hastes do moinho e façam-nas voltar à sua tediosa mesmice.
O tempo da razão, meus senhores, situa-se no alto da montanha e o único modo de lá fazer brotar esta força que desce brutalmente e se impõe sobre os moinhos é aguardar pela passagem pura e simplesmente da cronologia.
Os loucos conseguem rodar as hastes em movimento contrário, enviam boa parte das tentativas embrutecidas de volta à montanha, criam um contra-fluxo gigantesco e causam um furor neste cenário bucólico e sem-graça da mesmice. Já o moinho das bestas não conhece este líquido que escorre lá do alto; o rio é seco, o mecanismo enferrujado e as hastes rodam por mera complacência do próprio existir, enquanto apenas um filetezinho de água – encontrando fracamente seu caminho entre as rachaduras do imenso vácuo – escorre devagar pelo simples passar das horas imposto a qualquer procarionte.
Eu estou beirando a loucura. Ainda estou longe de um colapso geral na montanha, assim espero, mas meus moinhos giram completamente desgovernados e insensíveis à jorrada de dias, semanas, meses, que insistem em desaguar brutalmente sobre os meus, até então, verdes pastos, campos floridos, casinha de palha, feno no celeiro e vaquinha no curral. Tudo bem que no meu pasto tinha erva daninha, no meu campo pestes horrendas, na minha casinha conflitos e ameaças de morte, o feno estava mofo e a vaca prenha de um cavalo; mas são meras idiossincrasias quando o dilúvio se faz presente. O único refúgio é a saleta situada no topo do meu moinho que insiste em girar incansavelmente sobre a torrente espalhando as fúrias: a minha e a do tempo.
Em meio a este colapso hediondo, um pedaço de mim chamado amor debruça meu corpo cansado no parapeito da janela – enquanto as hastes passam furiosas rentes ao meu rosto e o caos se faz presente por todo o espaço –, estende meu pensamento ao infinito, faz-me colocar uma mão sobre o queixo e suspirar deliciosamente pelos momentos mais abstratos do interlúdio, aquele tempo encaixado entre o depois do fim em um, o depois do início em outro e a impossibilidade em ambos.


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E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acentos
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

H.H

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Chaveiro

O grande problema de ter tanto auto-controle emocional é que você perde completamente a habilidade em encontrar o caminho do coração alheio. Ele tem a chave do céu e a única coisa que posso oferecer é um passaporte para dentro de minh'alma. Mas ele não aceita, prefere as abstrações mais terrenas, afinal, ele já tem o céu... o que ele quer é só da carne, daqui, da terra.
Já disse que meu coração poderia ser teu chaveiro? Penduradinho delicadamente em tuas palavras e te acompanhando por onde você fosse...
Ignonímia I

O pior dos julgamentos é o tribunal do Ego.
Meu banco dos réus está repleto de "eus", eu assim, eu assado, eu cozido, eu cozinhado, eu mal passado, eu bem passado, eu... eu... Eu! Coisa mais repugnante eu em várias versões, quer coisa mais egocêntrica, sem graça, repetitiva e entendiante? Um dia, daqui muitos anos, vou virar uma Ana Clara Pessoa e inventar alguns heterônimos para, pelo menos, conseguir preencher a primeira linha da ata do meu julgamento. Por enquanto, a situação está uma zona, pior que funcionalismo público em véspera de feriado com troca de governante.
Como se não bastasse este caos (também) ignóbil, a solução dos heterônimos já começaria com um impasse: minhas pessoas não têm sexo. Digo, na verdade, elas até gostam, mas não se comportam de uma maneira constante tal que poderíamos lhe atribuir algum gênero. Para resolver este problema no plano da linguagem, pensei em atribuir nomes uni-gêneros como Lair, Alaor e acabou. Só sei estes. Mas eu não gostei destes nomes e, para conhecermos alguma coisa, temos que lhe atribuir nomes. Se eu coloco um nome que eu não gosto, já não vou gostar dos atribuídos e, por tabela, todas as pessoas serão réus e não haverá sequer um juiz, dirá um promotor. Por causa do nome.
Esta idéia do Pessoa já começou a alvoroçar o tribunal e causar ainda mais confusão, mas continuemos. Já que até alguns séculos atrás as mulheres não encenavam e, nem por isto, não deixava-se de produzir comédias... e tragédias com ambos gêneros.
E lá estão "eus", sem sexo, sem nome. Um bando de gente estúpida que não sabe o que fazer com suas bandeirinhas de plástico vagabundo, pom-pons berrantes e roupas sedutoras. Mas não adianta, o promotor, superego, é implacável. Sim. O promotor é um saco: não se rende a qualquer fantasia barata comprada na loja de conveniência, tampouco na boutique mais high-society do universo. Porém, ele se rende a coisas simples, como a menina tímida "feia-da-sala" de óculos, no último dos bancos, sentada com seus pézinhos a balançar, disposta a esperar uma eternidade para ser ouvida. E não pensem vocês que, só por isto, ele deixa de ser vil.


sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Medianite

Para quem gosta de ouvir o que todos dizem, a média é aquela velha história de ter dois frangos, duas pessoas, uma come os dois frangos, a outra passa fome; porém, pela média, estão ambas bem alimentadas. É isso. Mas o drama da média é pior ainda. A sensação mais nauseante que já tive foi quando alguém descreveu-me outra metáfora: é quando você está com a sua cabeça no freezer e os pés no forno de derreter vidro. Ora vejam, você está bem. Na média. Isto também remete à sensação de equilíbrio, no caso, térmico. Juro que agora penso duas vezes quem se auto denomina uma pessoa "equilibrada". Penso e muito.
A minha indignação com a média também se prolonga não só pelas metáforas, mas pelo status de "mediana". Tá que Aristóteles jurou de pé junto que a virtude está no meio, mas, sempre mas (adoro as conjunções adversativas), ele também disse que para "situações extremas, atitudes extremas" e, destarte, voltamos ao equilíbrio. Ou seja, o equilíbrio (virtude) não se mede pela simples "média" das coisas e, muito menos, pelas coisas medianas. Se a situação pede revolta, façamo-na.
E é isto que quero fazer comigo. Reforma. Uma desconstrução geral das coisas que penso, sinto, faço, julgo, minto e escrevo -- sendo esta última nada mais do que a síntese das ações anteriores. Todos estes elementos ocuparam um espaço de lata de sardinha vencida, uma coisa pequena, amassada, podre, moribunda e amórfica; um produto bem asqueroso que se encaixa na média das coisas que todo mundo faz, pensa, sente, julga, etc. O quadro é alarmante: fingimos em três níveis que, para o meu horror, acabam se tornando realidade. Eu acho que penso diferente, acabo pensando igual e todo mundo que pensa igual acha que eu penso diferente sendo que, na verdade, ninguém saiu da porra do lugar. Entenderam? É tudo fingimento, mas verdade dentro da média; uma mentira sem cor profunda.
E eu vou sair disto: às.

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

E a coisa funciona mais ou menos assim:
quanto maior a lucidez, maior a probabilidade de nos ofuscarmos com a luz. A força que fazemos ao comprimir os olhos diante de uma irradiação intensa desvia a energia do pensamento. O que acontece? Ora essa, ou ficamos loucos ou damos o crédito ao inconsciente. A intensidade não importa, eles preferem ficar com as sombras. Elas têm forma, a luz não. Para os cegos, é isto que importa.
Escrevendo

Só sei dar jeito
em adjetivo

Muita substância
carrega meu pensamento
subjetivo

Do controle das palavras
te digo uma coisa:

tenho em minhas mãos
o verbo

mas não domino
o substantivo

domingo, 15 de outubro de 2006

Design arrojado
Ele é um compasso. Crava a ponta firme em meu sexo e todas as idiossincrasias devem ser perfeitas como a circunferência desenhada pela grafite três ponto zero. Ele insiste em dizer que eu sou a medida de todas as suas coisas, e calcula todas as extensões de uma ponta a outra dos meus dedos. Rodeia-me com os olhos de arrancar qualquer pi radiano de minh’alma e não enxerga que eu ocupo toda a área. Não mesmo. Ele é tão racional em seu dois pi erre, que se esquece do meu charme pi erre ao quadrado. Aliás, ele só se lembra quando a ponta firme de seu compasso é cambaleada por um movimento assaz calculado de meu ventre. Ele diz que não é calculado, que eu sou pura área e mais nada. Apenas uma hachura. Mas eu sei que sou a base de toda aquela frieza calculista, ele não. E não quero que saiba. Ele, sem mim, é apenas um risco traçado, sem sentido, sem conteúdo, sem cálculo e sem beleza. Eu, sem ele, sou apenas um borrão amórfico transbordante para o nada, um erro grotesco da lógica. Sucedeu que o acaso derrubou café no nosso papiro, o tempo tentou consertar com uma borracha de petróleo. Caca. As nossas invenções prodigiosas perderam-se história.
O pretérito pipa e o futuro da flecha

Eu tento levar a sério as coisas que me dizem. Portanto, sempre tendo a começar um texto com "disseram-me uma vez que...", porque assim me disseram e assim eu tentei fazer. Não fico surpresa quando o "disseram-me" sempre erra o alvo (confesso até esboçar um sorriso sarcástico). A semântica monta o arco, o significado puxa a flecha e a palavra dita irrompe da arma rasgando o ar, sugando-o de qualquer outra intenção não-dita. Há quem consiga força para lançá-la à lua, e erra o alvo. Há quem é fraco, franzino e pedestre e articula uma combinação certeira. Há quem una potência e precisão, mas isto fica por conta dos gênios.
E, em meio a esta competição toda, preciso avisá-los de algo que "não me disseram uma vez que". Pois é, desta vez, não me avisaram: esta flecha tem rabiola. Sim, estou te falando, a palavra dita tem rabiola. Trata-se de uma mistura (im)perfeita do pretérito pipa com o futuro da flecha. Estou enrolada com várias rabiolas. Quem manda soltar um monte de flechas?

quinta-feira, 12 de outubro de 2006

Memorial de Ana Clara Moura

Memorial em homenagem à quase falência múltipla de meus neurônios que, apesar do trabalho mouro desta semana, não param de pular que nem tico-e-teco na brinquedolândia. Ana Clara porque, sim, mesmo labutando o dia inteiro do feriado (?), não perdi a noção de quem eu sou - assim espero. Mas ainda me pergunto para onde eu vou, de onde eu vim, onde eu estou, por que eu estou. Moura porque, bem, eu acho que vocês já entenderam.
Quanto à concretude deste título, peçam a nota do pedido e enviem ao setor financeiro.

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Guarda-roupa

Disseram-me uma vez:
não saia
de casa.
E eu saí,
de saia.

E reforçaram:
vá, segura,
pela calçada
Eu detesto
calça

domingo, 8 de outubro de 2006

Cabra cega

Em terra de cego
quem tem um olho é rei
quem tem dois olhos é louco
quem tem miopia é gênio
quem tem catarata é sábio
quem dorme é feliz

quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Para o futuro, de volta às panelas

Nas composições escolares, Frederico sempre caprichava no efe. Rebuscava-o amiúde e de tantas formas que a professora, ao mesmo tempo contente por ter um aluno tão dedicado, perdia as estribeiras com a longa demora do menino em terminar um simples exercício caligráfico. Ela não é a única a quem o personagem desperta sentimentos tão contraditórios.
Em casa, Frederico dedicava-se integralmente aos pais. Não por vontade própria, é claro, afinal tinha um pai cuja marra media dois prédios, altura media 1,78cm e tolerância dois ciscos e meio em dias de bom-humor. E uma mãe que, até quando nascera o filho, era uma mulher amável, porém, por vias do relacionamento, enterrou o cenho por cima do nariz e decidiu não retirá-lo de lá tão cedo.
A rotina de Frederico ao voltar da escola era constante: limpava seus pés no primeiro tapete da casa, ainda na calçada; abria lentamente o portão enferrujado, levantando a aba do trinco com uma habilidade inigualável, pois conseguia fazê-lo sem irromper um barulho sequer. Três degraus da escada separavam-no da entrada principal, e até hoje Frederico se pergunta por que seu coração palpitava tanto neste momento. Sua bermuda escolar subia e descia ao longo de suas coxas, enquanto ele subia vagarosamente aquele ínfimo lance de escada. Por alguns segundos, Frederico gostava de admirar a grandiosidade da porta de sua casa (um pedaço de madeira enorme, recheado de ornamentos, cravejado de pedras, com uma maçaneta suntuosa e um peso doentio). Seu pai proclamava muitas vezes a nobreza jurídica desta porta às visitas: “é madeira de lei”. Entretanto ele nunca entendera muito bem esta afirmação, e, quando lhe apresentaram o símbolo da Justiça, acreditou que por trás daquela venda havia dois sedutores e enormes olhos azuis.
Depois da contemplação, ele limpava os pés no segundo tapete da casa e abria a porta. A única pessoa a sorrir com sua chegada era Constantina. Seus olhos corriam a casa de ponta a ponta, da esquerda para a direita, e vice-versa, freneticamente em todas as vias, se seus pais não estavam, ele rompia da entrada da casa correndo em direção à serviçal e dava-lhe um abraço longo e apertado. E Constantina, feliz pela espontaneidade da criança e também tensa pelas conseqüências desta cena – caso os pais de Frederico vissem-na –, recebia o calor do menino em seus braços e saía apressadamente com a criança no colo para a cozinha.
Este momento era o mais prazeroso. Ambos sabiam tácita e silenciosamente da restrição temporal daquele deleite. Portanto, trocavam as experiências do dia em ritmo acelerado e divertido. Frederico contava com a boca cheia de bolo seu gol de placa, repetindo o gesto do goleiro com o copo na mão e um bigode de leite acima dos lábios. Enquanto Constantina usava a colher de pau, em que mexia a panela de doce, para imitar o verdureiro a quem soltou vários desaforos por ter insinuado um elogio a seu decote. Por vezes, disparava a cantar para a criança a última música que aprendeu usando a própria colher como microfone.
Porém, o clima amistoso não durava muito tempo. Não só pelos barulhos de escada rangendo, que denunciavam a desconfortável presença da mãe em breve, mas pelo motivo da felicidade encantadora e sarcástica daquela que descia a escada: o destino de Frederico. Ele também nunca entendera porque as ancas menores de sua mãe eram mais assustadoras do que as enormes de Constantina, mas de uma coisa ele tinha certeza: o tal futuro era tão aterrador quanto aquelas ancas finas, e não passava de mais nada além do momento em que o riso é embotado, o bolo é indigesto, o leite é derramado, o pudor é duplicado e Constantina volta às panelas.

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Homem

Vi ontem um homem
Nos límpidos pisos do shopping center
Catando produtos entre as vitrines
Quando achava alguma coisa
Não examinava nem cheirava
Passava o cartão de crédito com voracidade
O homem não era um jovem
Não era um velho
Não era um infante
O homem, meu Deus, era um bicho!
Novidades no terreno instável onde habitam os planos e as ações para o final de semana

E tudo estava planejado para ser assim: mais um final de semana -- merecidíssimo -- como outro qualquer com muita soneca, leitura e dvd. Soneca para me recuperar da semana agitada pelos bares da vida, leitura porque meu espírito clama por alimento e dvd porque resolvi, de uns dias para cá, estudar cinema. Estudar de verdade: entender a história, as relações, afinar o olhar, o ouvido, o pensamento, e não decorar nomes de cineastas, filmes famosos (considerados "cults"), datas marcantes, festivais importantes para sair regurgitando por aí como qualquer outra asneira que, geralmente, sou obrigada a ouvir de pessoas que querem se considerar "intelectuais" etc etc. Isto me revolta.
Tudo bem, de volta ao planejamento para os dois dias sagrados que interrompem, em tese, a linha de produção semanal, eu, como boa proletária, calculei tudo em termos práticos e de entretenimento: minha cama, meus livros, meus dvds. Esta soma é igual à Ana Clara fechada em casa, quieta e sem muita badalação. E falta de badalação, por falta de badalação já estava o clima de votação mesmo, só ia me aliar ao espírito incólume que pairou nesta campanha.
No entanto, como entre os planos e a ação há uma linha tênue que, por mais difusa que seja, ainda exige a opção entre o "sim" e o "não", a malfadada decisão não acompanhou o planejamento.
Badalei intelectual e futilmente o final de semana inteiro. De festa à palestra, de orkut à Madame Bovary, de Jardins a Walter Benjamin, de Maria Rita a Vinícius de Moraes, de interpretação de sonhos a Lacan, e, no domingo, de "política" à política. Os dois dias de interrupção da linha de produção semanal ficaram mais para desvio da esteira do que qualquer outra coisa.
Resultado: ainda estou tentando recolocar minhas esteiras no lugar certo. Ainda sobram alguns parafusos, mas não sei onde colocá-los e, meu sapato, que está perdido em algum lugar da máquina (e que um dia vai entortar os pinos, tapar uma válvula de escape e desestabilizar algum sensor criando um lapso geral), será encontrado em meus pés quando tudo estiver acabado.