terça-feira, 28 de novembro de 2006

Declaração
(vai vendo)

Eu tenho a coragem de morrer de amor. E, para mim, a paixão nunca traz dor. Dou a ele toda a devoção da vida, num só instante, sem momento de partida.
Posso dizer a ele tudo o que é preciso ouvir, todo este papo de tempo que insiste, existe e há de vir. Já disse que eu quero, tenho absoluta certeza e, de repente, tenho a sua vida a meu dispor.
Eu vejo, eu sei como é lindo morrer de amor. E morro.

Éca. Tem graça?
O amor é sempre mais bonito no condicional, não sei porquê.
Sandices

Aqui no meu trabalho, neste exato momento, cai uma chuva torrencial. O ceú pretejou, as nuvens se aglomeraram, a faxineira avisou "vai cair um toró" e, naquele espaço do cafezinho, todos compartilharam e comentaram a preparação dos céus para este dilúvio. Ele teve o dia inteiro para ligar, exatamente todas as horas disponíveis antes desta. E ligou só agora, com este tempo, que não posso sair da minha sala nem para respirar. Ligou para outra. Sim, deixou-me com uma dor sem tamanho. Pois é, ele gosta de castigar. Obrigou-me a compartilhar com o céu todo este derramamento de água que agora acumulo em mim, pois não posso desaguar-me aqui. Não bastasse uma, ligou duas vezes. Enquanto vejo o céu se regalar e se desfazer em água, desfaço-me em palavras perdidas, não concatenadas, que saem de um coração transbordante trancado a sete chaves e à prova d'água.

domingo, 26 de novembro de 2006

Extrato

O meu cartão de crédito não é suficiente para pagar o enterro e as flores, se eu morrer de amores. Portanto, honey, trate de me incluir entre as contas de água, luz, telefone, iptu, ipva, gás e aluguel. E, ah, por favor, em débito automático.

domingo, 19 de novembro de 2006

Acorda pra mim
(quem sabe eu não me enforco com ela?)

Depois do coito ele dorme. Eu sei que ele é uma reta de 85 graus ascendente e outra decadente, e eu uma parábola com o zênite bem largo, mas devíamos encontrar uma equação de síntese nesta história. Enquanto isto, ele dorme.
Minha diversão predileta, durante seu sono mais profundo, é aproximar-me bem perto de seus olhos, nariz rente a nariz, boca rente a boca e não fazer nada. Assim, tenho a certeza de que, por um momento, eu me entreguei para ele - inteira até a mente - agora sim, eu faria tudo que ele pedisse, até entregar todo meu coração que ele insiste em procurar pelo canal mais complicado e desejado; e o filho da puta ficou imóvel, impassível, um insensível.
É o gancho para me virar repentinamente, como quem despreza uma carne mórbida, acender o abajur de luz fraca, sentar-me na beirada da cama para procurar um foco luminoso suficiente, os pés no estrado lateral, a boca no joelho (adoro meu joelho, mas só dobrado) e um caderninho, à frente de todo meu corpo em posição fetal, ligado a mim apenas pela mão esquerda e uma caneta na mão direita. Escrevo, escrevo, risco e escrevo: palavras insensatas de um universo desnudo, tão desnudo que esquecemos como era a roupa dele.
Por um mistério feminino ainda não desvendado – ainda vestido, eu diria – eu sei que ele acordou atrás de mim, ouço até o piscar confuso e cambaleante de suas pálpebras a percorrer, depois do ajuste-controle da retina, as minhas costas. Meus cabelos, pela noite tão agitada, estavam soltos, desalinhados e perdidos dos ombros pra baixo. Ele adora minhas costas e meus cabelos. Estou certa de que daquela cena sairia um elogio, mas ele não disse nada. Olhou para o teto e perdeu-se em outro silêncio pós-coito. Uma mistura de mácula e honraria pela (pretensa) possessão de minha pessoa gerou um orgasmo subjetivo nele. Outra forma cretina deles desaparecerem e dormirem, enquanto o meu orgasmo subjetivo é sentar naquela beira da cama e escrever, escrever, escrever e escrever para, um dia, quem sabe, durante uma briga horrenda, daquelas de ofender a quinta geração da pessoa mais querida, eu jogue todas as anotações pelos ares, esfregue mesmo na cara dele, em meio a um turbilhão de xingamentos e ameaças, e o faça entender que eu o amo mais do que aquilo. Porque quando o sexo acaba, eu continuo acordada.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Música repetida

Um bom sinal de que há algo de podre no reino do amor -- em todas as suas acepções -- é ouvir a mesma música. Para os mais apaixonados, é a lembrança de um momento maravilhoso fixado em algum lugar do passado, que não passa de um instante idealizado a mais no grande tédio que toma conta de todo o tempo. Para os desafortunados, é a mesma porra da lembrança congelada em outro contexto: o do desespero.
Eu faço isto. Coloco a música, aquela que você conhece. E não faça esta cara de quem não entende. Prendo-me naqueles intermináveis 3 minutos e 43 segundos. No repete. Fico enjaulada em seus braços, seus cabelos, seu corpo, sua pele, sua voz, seus carinhos, travessuras, implicâncias, ciúmes, inveja, raiva, ódio e acaba. Quando a música chega ao fim, ponho para repetir. Tudo recomeça. O compasso harmonioso da introdução, dos primeiros segundos, o solo de baixo, as primeiras entradas da bateria, o discorrer do violão, o inesperado: o tempo da conquista. Depois o chacoalho, as intimidades, a guitarra, o orgasmo. E depois tudo caminhou para o fim, sem que pudéssemos perceber... dançamos a música como se ela não acabasse nunca, não preparamos todos os toillets para o fim descabido da composição e, enquanto você gritava para avisar que o volume parecia estar baixando, eu acendi um cigarro e te avisei que a vida era assim mesmo. Esta era a graça. Por enquanto, ainda não encontrei o botão repete da vida e o maço não chegou ao fim, mas, quando encontrar, te trago de volta para mim, no mais novo hit do momento. Até lá, fico aqui estendida sobre a cama, com o controle numa mão, o cigarro na outra, o repete no polegar direito, duas lágrimas nos olhos e a música amiúde em meus ouvidos.

domingo, 12 de novembro de 2006

Quem sou eu

A certidão diz que eu sou Ana Clara, mulher, branca, nascida em 1984; o diploma diz que eu sou jornalista; a carteirinha diz que eu sou estudante; o título diz que eu sou eleitora; o cartão diz que eu sou uma correntista; o extrato, que eu sou uma devedora em potencial; o cpf, que eu existo pro Estado; o rg, que meus pais são quem eu acho que é; o cartão do convênio, que meu corpo pode pirigar a qualquer momento; meu email, que eu sou internauta.

Agora, tenho uma séria dúvida se um dia queimarem tudo isto.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Nunca ganhei flores. Nunca mesmo. Nem de parente, nada. Mas hoje recebi um buquê. Lindo, por sinal. Um buquê de palavras. A vantagem é que elas não morrem, pelo contrário, mesmo se o tal sentimento enunciado esvair-se algum dia, elas continuarão intactas. Nem sei o que fazer de tanto encantamento, como se não conseguisse achar um vaso adequado para um buquê tão elaborado.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

A minha vez e a voz dos outros
A minha voz e a vez dos outros









Os deuses,

que não perdem jamais uma oportunidade

de ferir, contrariar e de destruir
a qualidade da vida humana,
ficam totalmente desconcertados
se, apesar de tudo,
nos comportamos como grandes damas
Virginia Woolf


Isto não significa subserviência, submissão,
sentimento de culpa ou qualquer
outro tipo de repressão moral ou cultural
Mas, sim, saber que
a idolatria que as mulheres têm pelo amor é,
no fundo e originalmente,
uma invenção da inteligência
Nietzsche.
E se, por acaso, nos habituamos à superestimação
deste amor e "caímos na própria rede", podemos usá-la
para (re)tecer infindáveis amores intensos
e não, necessariamente (ainda bem),
eternos.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Enigma

Não. Não vou lançar um desafio porcaria de “o que é, o que é”, nem propor uma pergunta existencial de cunho altamente filosófico (se existencial-filosófico não for pleonasmo), tampouco esperar que entendam tudo o que escrevo, mas não resisti à tentação de discorrer sobre algumas observações.
Há certas peculiaridades na linguagem que nos permitem escrever sem ter escrito e dizer sem ter dito. Não sei fundamentá-las com argumentos assaz consistentes – espero que um dia possa –, muito menos descrevê-las aqui, nua e cruamente, já que seria preciso explicitar o dito não-dito e, pior, escrever o não-escrito. Mas, tentemos.
O princípio é semelhante ao do mecanismo de olhar uma imagem, ou seja, o mesmo processo do ver sem ter visto. Na “carta sobre os cegos”, de Diderot, é explícita a possibilidade de um cego de nascença conceber figuras geométricas em sua mente. Se elas se assemelham ou não ao que realmente “vemos” é outra história. No entanto, “ver o que realmente é” não importa muito, principalmente no que diz respeito a enigmas, coisas não-ditas, não-escritas e afins. A questão é que o cego “vê” uma figura com os mesmas características e princípios geométricos-matemáticos mesmo sem ter visto.
Caindo para o senso comum, também podemos trazer aqueles fenômenos de força da crença em que os indivíduos, dotados de alta carga emocional, declaram enxergar aparições, luzes ou qualquer coisa do gênero, que escapam às pessoas que não se encontram no mesmo estado de pertubação.
Dito isto, as coisas escritas e ditas seguem a mesma linha. É claro que nesta analogia perde-se muito, pois são formas de comunicação com funcionamentos e conexões muito díspares, mas o processo de “ocultamento”, ou melhor, não-explicitamento é o mesmo. Portanto, somos capazes de capturar diversas interpretações não-verbalizadas que se encaixam perfeitamente nas suas respectivas formas de expressão – escrita ou falada – como o cego vê uma figura com os mesmos princípios matemáticos.
Tá, isto não é nenhuma novidade, mas o que mais me atrai nesta explanação toda é o que escrevemos sem ter escrito, intencionalmente. O zênite desta qualidade está restrito aos poetas, aos melhores poetas. E, se considerarmos o plano da sensibilidade emocional feminina, podemos dizer que somos as leitoras que mais encontram não-escritos e, principalmente (para horror do sexo oposto), não-ditos. Isto não significa, necessariamente, uma superioridade, tampouco uma inferioridade, apenas uma constatação. Apesar desta imparcialidade um tanto falsa de minha parte, não para o lado feminino, mas para o lado masculino, a questão dos gêneros torna-se um tanto irrelevante para o trabalho do enigma linguístico. Uma qualidade excepcional presente apenas em alguns e algumas que, sem sombra de dúvida, não deixam de ocupar minha prateleira e meu browser.
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O que ouviu os meus versos disse-me: Que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, ninguém

Porque todos amam as flores por serem belas,
[e eu sou diferente.

E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra,
[mas eu não.

Eu amo as flores por serem flores,
[directamente.

Eu amo as árvores por serem árvores,
[sem o meu pensamento.

Fernando Pessoa