quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Reprodução
A hera nasce, cresce, se reproduz e morre
A era nasce, cresce, morre e se reproduz

sábado, 29 de setembro de 2007

Não quero ser diferente
Quero ser igual
igual a todas as coisas diferentes que te fazem feliz

domingo, 16 de setembro de 2007

"Talvez nos encontremos de novo, mas
Ali onde você me deixou
Não me achará novamente"

Bertold Brecht

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Começou pelo fim
retardou no meio
acabou na partida
das partes envolvidas

envolveu o centeio
a uva passa e a comida
de algumas idéias travestidas

Findou-se no ar da expectativa
esmoreceu pelo ralo dos olhos
e ressuscitou ao segundo dia
permitindo a veia e a saliva
das palavras não resolvidas
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A mar

melancolias de marfim
em estruturas de mármore
definindo martelos
em ferida marcada

não ouse amar,
ele disse

Sem amar,
eu respondi
Não tenho fim,
acumulo amores
para não tê-los
Sou deserto em cada
desejo teu.

O mar deveria ser feminino.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

O. Tetiro e M. Teponho

Te tiro dos pensamentos você volta
Te tiro do coração você não sai
Te tiro da realidade você fica
Te tiro quociente você divide
Te tiro da inércia você rotina
Te levo a sério você brinca

Te ponho potencial você cinética
Te ponho na espera você se atrasa
Te ponho consciente você sub
Trai
Te ponho mente você verbo
Te ponho ão você inho
Te conto piada e você hipo

Como isto?

Do sacro tiro
Do ufano ponho
Tiro ufano ao longe
Sacro ponho laico
Erra quem diz aramaico
Passa longe quem manda flores
Chega perto quem espanta amores
Um grito surdo da dialética
Quebra o dedo virado para o céu
E amputa o pé preso à terra
Entre as mutilações
Vos apresento:
O ponto Tetiro e M ponto Teponho

sábado, 28 de julho de 2007

Apenas um registro

Hoje, fui parar, muito por acaso, em uma cerimônia de casamento espírita.

Participei, ou melhor, assisti de camarote o dia mais feliz da vida de alguém. Não deixei de provar, é lógico, do meu próprio veneno ao constatar o sorriso largo da mulher, o brilho nos olhos, a confiança de uma vida inteira juntos... e o olhar preocupado do homem, uma ânsia pelo fim da cerimônia e, quase podendo ler sua mente, “agora as contas sou eu quem pago”.
Pessimismos à parte, concentrei-me na mulher e prestei atenção a cada passo, a cada hesitação, em tudo que eu pudesse recolher de informações para guardar no pacote: “O dia mais feliz da vida de um ser humano é assim:...”.
Em meio a estas divagações, recolhi-me ao meu subconsciente para encontrar os dias mais felizes da minha vida. Sem papo enojado de auto-ajuda; e felicidade é o tema mais explorado e inacabado das mesas de bar. Não perderei meu tempo dizendo que ela não existe, não é? Não precisa.
De olho na noiva, fui buscar minhas reações e onde eu estava quando...

Dei meu primeiro beijo. Rá! Graças à ajuda da Carolina, uma amiga: ela olhou para mim e disse: “Ana Clara, seus olhos estão brilhando de felicidade!”. Sim, eu soube que aquele seria um dia marcante, mas só – e somente só - porque alguém me contou.

O filme da vida continua rolando... amizades, conquistas, momentos como... este? Não. Este! Também não. Quem sabe aquele? Huumm... pensando bem, não. E aquele outro? Será... acho que não.
Não encontrei. Erra quem ousa pensar que eu sou uma pobre garota infeliz, mas nada se comparava às reações, aos anseios, às expectativas que a noiva estampava no rosto.

Parei, de repente, quando soube que passei no vestibular. Lembro-me que estava em um churrasco, minha mãe ligou, deu a notícia e eu saí gritando, pulando, abraçando a todos, eu não conseguia conter um sorriso de orelha a orelha e falava sem parar da minha alegria.
Esta reação, definitivamente, não tinha semelhança alguma com aquela mulher reservada e contida num vestido branco, mostrando os dentes e olhos brilhantes.
Para manter a relação um pouco mais equivalente, corri rapidamente o filme com o seletor de imagens ligado no item relacionamentos. 48 horas, cinco meses e 30 dias. Diluído por este período estão os dias felizes da minha vida ao lado de alguém. Já os dez anos restantes....

Recolhi as pétalas do chão, guardei-as em um envelope e escrevi:

“Registro que hoje, dia 28 de julho de 2007, alguém estava realmente feliz. Muito feliz.”

sexta-feira, 27 de julho de 2007

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Mitomorfoseando:
mito
mitose
metáfora
metamorfose

Ainda no casulo.
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quinta-feira, 14 de junho de 2007

Mitófora

O tempo desgasta as metáforas e fortalece os mitos.
Ainda luto pelas metáforas
Pela descrença nos mitos
Sem matar o ser humano
Sem buscar o tempo perdido

Impossível
Improvável

E eu digo
Imperceptível
Incalculável

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Uma criança me disse
com voz doce e olhar pueril
que o amor saía da saia
Perguntei:
Por quê?
É quando as pernas se encontram.

sábado, 12 de maio de 2007

Caju

O pacote de momentos destinado à ininterrupta monotonia da rotina pode ser dissolvido e ingerido num gole de suco de caju. Um líquido amarelo, meio cor de burro quando empaca (se fugisse ainda teria algum quê de dinamismo), gosto de água com açúcar e duas medidas de engodo. Um secreto fingir que tomamos algo prazeroso e no fundo só água, açúcar, rotina e caju. A bílis de minha raiva, outrora um ode à fuga da mesmice, torna-se aquele amarelento embaçado, fruto do tempo passado que acalma os ânimos e nos fazem voltar ao... mesmo. Caju.
Mesmo, mesmo, sempre o mesmo. Não! Basta!
Eu quero beber o veneno de minha raiva; o licor da minha sedução; o ácido dos meus pensamentos; a cicuta do meu ego; a água dos meus prazeres. O leite do teu deleite; o vinho de teus olhos; o soro dos teus defeitos; e até o óleo de fígado de bacalhau da tua forma de amar, mas não aceito o mesmo. Esta mistura fajuta de prazeres comprados com dissolução certa e modo de preparo; servida em copos infinitamente iguais para pessoas esquizofrenicamente iguais num comportamento enojadamente normal.
Façamos a nossa festa! Destruamos os copos de mesmice e toda a sala de jantar!

sábado, 28 de abril de 2007

Eram em três. Enquanto Vérges procurava incessantemente dar conta de duas mulheres afoitas por sua atenção, uma instância superior, onisciente, onipresente observava milimetricamente cada passo daquela conversa: eu, a narradora. Mas, antes que me julguem prepotente (nós, os narradores, sempre o somos, porém dificilmente explicitamos. Afinal, atualmente, não é muito vendável não fazer com que o leitor acredite que ele é o máximo), preciso avisá-los de que eu sou uma das mulheres da conversa. Compartilho daquele momento, mas tenho poderes – que a ficção me permite adquirir – de, a cada quinze minutos, sair de mim mesma e situar-me num ponto superior, acima daquelas três cabeças banais jogando conversa fora. O ângulo é exatamente o centro da mesa, superior aos mortais, como se simplesmente eu tivesse amarrado minhas ancas nas vigas do telhado e observasse tudo como um anjo pelado tocando trombetas (apesar de procurar manter o silêncio durante a ascensão).

Vérges dirigia todo o assunto da conversa com uma destreza artesã. Cada movimento de sua mão era capaz de provocar uma mudança brusca nos temas tratados, uma parada repentina ou um silêncio absoluto para dar espaço às suas colocações. Tinha o controle dos olhos e ouvidos das mulheres em cada gesto de seus dedos, em cada indicador apontado, em cada afago no cabelo. Frolaine era uma; e eu, a outra. Frolaine contestava todas as observações de Vérges, mas era logo vencida pela levantadinha do óculos e dois argumentos. Sem base, não havia discussão. Quanto a mim, só posso dizer durante a ascensão; afinal, qualquer colocação agora, soaria como um falsete tanto em relação a mim, quanto à Frolaine. Posso dizer que eu admirava cada gesto daquele rapaz que prendia a minha atenção, não mais do que isto.

Vérges, Frolaine e eu tínhamos muito em comum. Era a isto que se devia aquele encontro. Frolaine sempre acreditou que conquistaria Vérges com suas implicâncias, apostara toda a adolescência em Vérges, mas ele sempre a tratara como uma irmã e, ficar com ela, segundo sua própria ironia e sarcasmo, era incesto. Eu desprezei, durante a mesma adolescência esperançosa de Frolaine, o próprio Vérges, enquanto este rapaz, hoje preferido entre as mulheres, acusa-me de tê-lo ensinado a crueldade com as mademoiselles.

sexta-feira, 27 de abril de 2007


E viro caixa de lápis de cor
não para desenhos e humores de mimeógrafo
mas para palavras e imagens coloridas
além do teu lápis e humor cinzas

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Quando o mundo todo explicado perde a graça
Vende-se o mistério

À parte do esnobismo sociológico, gostaria de fazer constar, a partir das minhas humildes observações, algumas, como diria, curiosidades que, quase sempre, me assolam a ponto de torná-las mais um fragmento do ás (neste caso, o assunto está mais para o “mentira”). Como é sabido, não assisto televisão. Não por exibicionismo intelectual, não a considero a disseminadora indiscriminada da imagem da besta, nem a responsável por todas as mazelas culturais/educacionais do país, tampouco a (única) alienadora malvada desta pobre sociedade vítima de todos as mídias, mas por uma fobia adquirida a ponto de não agüentar ficar mais de cinco minutos sentada no sofá. A não ser por filme ou jogo de futebol, nada mais me apraz nesta mídia e todo o resto irrita-me. Mesmo assim, não pude deixar de constatar, por este e outros meios, uma mania nacional – e desconfio que até internacional – pelos casos de mistério. Séries de investigação criminal, papiros perdidos, talismãs roubados, códigos indecifráveis, fenômenos extraterrenos, enigmas religiosos e todo o pacote de roteiros que incluam algum elemento aparentemente inexplicável vêm se tornando verdadeiros best-sellers. Não é preciso citar “Código Da Vinci”, não é? Ok, já foi. Citado está. É certo que sempre houve um interesse expressivo também em Sherlock Holmes, Agatha Christie e companhia, no entanto, muitas vezes, reservado ao seu grupo exclusivo de apreciadores. Atualmente, como de praxe, a massa pasteurizada de produtos com este enfoque está com maior espaço, eu diria, todos os espaços das prateleiras. Uma das explicações para tal fenômeno, creio, não está muito longe.

A indústria cultural, sabe-se, apenas um mecanismo de toda esta engrenagem para fazer-nos crer que o mundo é maravilhoso e se você não concorda é um aborígene, procura oferecer – e consegue – todas as explicações sobre o mundo. Problemas no amor? Tome uma coca, compre um livro de auto-ajuda ou se acabe no shopping. Com dinheiro? “Como casais enriquecem juntos”. Felicidade? Veja um filme bem água-com-açúcar e ele te dirá. Relação humana? Psiquiatra (e um bem bonitão, igual ao do cinema). Problema social? Doação para ONG. Poderia discorrer aqui horas a fio os mecanismos de cerceamento das questões relevantes e, por ora, desconfortáveis que a indústria cultural, de alguma forma, tenta resolver, ou melhor, resolve aparentemente. Porém, por contradições próprias do sistema, tudo está explicado e, mesmo assim, as pessoas estão “descontentes”. Todos queriam explicação, agora a têm (os que se deixam crer) e, catso, simplesmente a-ca-bou a gra-ça. Como resolver isto, afinal, parar de consumir não podemos? Simples, tchan-ram, os enlatados que falei. Transporta-se a ânsia que mesmo o mais selvagem dos homens (se homem o for) tem, um dia, pelos “mistérios” entre o céu e a terra para as telas do cinema/televisão/computador. As “dúvidas” tornam-se compráveis, portanto controláveis e inofensivas. Não é um fenômeno nada novo, não é a primeira nem a última vez que acontece, porém, mesmo com todos os esforços de homogeneização e pasteurização do pensamento e dos homens, a indústria cultural ainda rebola para que o sistema supere suas próprias contradições. Tá, não foi um rebolado que exigiu muito esforço, mas, como disse, é uma constatação enquanto a gente vê a roda viva girar.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

O amor que trago: dores profundas enroladas num papel bem piegas de pouco caso.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Apresenteando
23 anos.

domingo, 15 de abril de 2007

Jardins suspensos

Para descrever o inferno usamos palavras feias. Pelo menos, é assim que muita gente faz. Reúne um grupinho considerável de léxicos horrendos e pavorosos e pronto. Diabo, demônio, capeta, cão, capiroto, coisa-ruim, cramulhão, dor, tortura, desgraça, humilhação, ferra brás, pé de bode, satanás, sete peles, tranca rua, tinhoso, sofrimento, pacto, morte, angústia, desespero, pavor, medo, pânico, orgulho, luxúria, gula, tentação, cobiça, inveja, desprezo, crueldade, vileza, gordura quente no olho, pimenta em ferida de leproso, faca nas entranhas e o inferno está montado. Acrescente-se a isso, é claro, já que é para ser infernal, algum medo ou receio da pessoa a quem queremos impressionar elevado à enésima potência. A partir deste quadro básico, com poucas variações, acreditamos que todas as coisas horríveis do mundo estão descritas e resolvidas. Não se enganem, meus caros. O inferno mesmo está presente até nas paisagens mais belas com borboletas voando, jardim planejado, céu limpo e vista para o mar. No arco-íris que se abre, na flor que brota e na graminha aparada. Basta olhar para o lado, quando seus olhos saem do outdoor de propaganda do novo condomínio.
21 de março
Havana Cuba
1º dia

Várias cenas tentei registrar em minha memória para passá-la aqui, mas foram tantas que guardei que uma sobrepõe-se à outra e não consigo mais marcar o exato ponto em que elas chamaram-me a atenção. No máximo, posso dizer que agora tenho vários pontos de atração (das muitas coisas que captei) coberto por um manto difuso do excesso de novidade. Este fenômeno, este sim, sintetiza a enxurrada de momentos experimentados até agora: a vista aérea noturna de Cuba.
Assim que soube, pelo televisor do avião, estar sobrevoando o solo cubano, agarrei-me à janela e lá fiquei. A lua, quando saí de Panamá, estava branca e parecia escancarar um sorriso largo de comprimento e curto de altura. À medida que nos aproximávamos de Cuba, a lua tornando-se-ia amarelada e cada vez mais desavergonhada.
Lembro-me de ter olhado para ela logo após o aviso de cerrar os cintos para o pouso: era como se os astros sorrisem para mim. Ainda tenho dúvida do caráter deles, mas, bem ou mal, era uma saudação de boas-vindas.
A partir do aviso do piloto, concentrei-me em observar o solo. Nada de grandes concentrações de luz, prédios altos, muitos espaços, cidades planejadas, nada. Como se jogassem um manto preto sobre uma cidade cheia de luz e apenas alguns pontos se destacassem sobre ele. Assim parecia o trecho entre o oeste e o leste da ilha. Por meio de um foco iluminado, pude notar que havia, abaixo de mim, uma longa estrada, mas não o sabia até então. Em toda a extensão da Rodovia, só havia um feixe de luz. Por um egoísmo qualquer (visto que isto significa falta de segurança e outras muitas coisas) considerei esta cena uma das mais belas que já vi. Concentrações pequenas de luz, muito espaçadas aparentemente sem comunicação alguma. Em anda parecido com o céu de SP, que é similar ao do Panamá e outros (nas mesmas condições).
Muy belo.
Cheguei à noite, 22:18hs, horário local. Demorei a encontrar minhas maletas e, quando saí, depois de muitas perguntas no portão de imigração, a família já me esperava.
Entrei em um carro azul, desses que aparece em todo filme que se trata de Cuba, un carrito muy bonito. Ah, não posso deixar de registrar um certo desconforto em todos os adjetivos (por mais agradáveis que o sejam) que remeto à qualquer coisa daqui.
Digo que acho os prédios, os carros, a tranquilidade e tudo o mais e já me considero uma "egoísta" de antemão. São casas velhas, sem descarga, sem infra-estrutura, mas eu as acho belíssimas. As ruas parecem que pararam no tempo, construções magníficas "preservadas" (sem o sentido técnico do termo). A casa onde estou é pequeniníssima, mas muito agradável. Tem corredores obscuros, janelas antigas, prédios que brasileiros desavisados chamariam de cortiço, mas tudo muito limpo (mesmo que não o pareça).
Não consigo entender uma palavra do que uns dizem ao passo que, com outros, entendo tudo e converso bastante. Estou muito sem graça... algumas pessoas não "gostam" (como se fosse uma questão de "gostar" ou "não", hunf) do Fidel.
Constranjo-me muitas vezes de dizer que o "atraso" deles... o tempo parado por aqui... é uma das coisas mais ricas que já vi. Mas assim é, que o saibam... e tudo se revira dentro de mim... mais um daqueles períodos de reviravolta total entre certo e errado, belo e feio e justo e injusto.

sábado, 7 de abril de 2007

Faz o seguinte: quando chegar em casa, derrube todos os meus livros, esparrame-se pela estante e diga que não sai de lá de jeito nenhum. Mas tem que ser firme e ter argumentos suficientes para eu não catar nenhuma livreta de poeta vagabundo, tacar na tua cabeça e te mandar sair dali. Tem que me oferecer cores, palavras, sabores, mundos, imundos e até cheiro de papel velho, não ligo. Quanto à interpretação, deixe por minha conta. Se você me convencer, expando o céu da minha semântica e te encontro até em notações fonéticas de dicionário chinês com explicação em russo. Faço de tuas estrelas minhas palavras, da tua existência meu pensamento, da tua caneta meu escudo, do teu corpo nosso sexo e das vírgulas, cúmplice. Esparramarei meu corpo sobre todas as folhas de papel branco e não organizarei as paixões em ordem alfabética, elas não terão nome. Colocarei teu lápis entre os seios e a tua frase predileta no umbigo. Terei olhos de Capitu, corpo de Iracema, rosto de Lolita e sexo de Tieta. Depois saio para buscar aquele peso de pedra que segura os livros para não caírem.
"NÓS NÃO VAMOS TRANSFORMAR A SOCIEDADE"
mais uma do capítulo deixa-tudo-como-está-porque-sempre-foi-assim e o segundo volume do, já batido, eu-tenho-uma-dúvida.

Esta semana fui a uma palestra sobre crítica de cinema e, depois de uma colocação sobre a irrelevância de uma certa discussão que tinha se levantado (sou chatonilda mesmo), depois de toda a confusão causada e depois de um certo "desconforto", a frase final foi dita, como sempre, pelo palestrante (no sentido de que ele se posicionou como "autoridade" no assunto): "nós não vamos transformar a sociedade". Por um ímpeto civilizatório ou repressivo social, não prolonguei a discussão, não me posicionei, enfim, calei-me (já tinha causado balbúrdia suficiente). "Nós", ele se referia ao cinema, "não vamos" significava não-cobrem-isto-da-sétima-arte, "transformar" não existia no imaginário do falante e "sociedade" era aquele círculo de meia dúzia de pessoas, brancas, magras, ricas e contentes.
Alguns dos elementos da discussão eram até que ponto um filme é revolucionário; se isto é mera ilusão esquerdista; que o cinema brasileiro, só porque é financiado pelo Estado, sente-se na obrigação de ter alguma roupagem - nem que seja vagabunda - de discussão social; que não se pode cobrar isto (sempre) do cinema e mais alguns outros temas, um pouco mais enlatados e batidos, discutidos em rodas deste tipo.
Quando fui embora, a tal "não-viabilidade" (ou não-querência?) de transformação ficou na minha cabeça como um dedinho de criança remelenta que fica pedindo pra comprar um doce. Que as coisas fiquem claras: eles entendiam transformação e revolução como a mesma coisa e debatiam neste nível; todos concordaram com o palestrante.
Que escancarar nossa situação social, desfiar as lutas de poder entre classes e todas estas coisas "politicamente corretas para um filme", até agora, não gerou nenhuma manifestação político-social significativa é fato. Que uma revolução da sociedade por meio, apenas, de filmes pode ser uma utopia, é válido. Mas será que isto não acontece porque, justamente, os filmes são feitos para as pessoas que querem mantê-la tal como está? A observação (uma das que eu mais gostei, diga-se de passagem) do próprio palestrante ajuda a responder. Ele afirma que, na maioria das obras cinematográficas de "denúncia social", há um personagem-Cicerone, geralmente, é o protagonista, que introduz e encaminha o cinespectador pela realidade perversa-bandida-injusta do país. Um bom indício para começar a se pensar sobre isto, não? Pois é, não foi o que aconteceu.
Bom, num plano mais concreto, a dúvida que mais me assolou foi a seguinte: supondo que a revolução (como eles entendem) não seja possível por meio dos filmes, a "reforma no modo de pensar" não se pode começar pelas películas? Digo, não só por elas, mas por meio das obras de arte como um todo? Aliás, a obra de arte não é uma manifestação peculiar do "modo de pensar"? Uma mudança (não sei encontrar a palavra exata) radical no cinema não pode catalisar as pessoas a pensarem de outra forma ou, simplesmente, a pensarem? Como Brecht, no teatro, revelar alguns mecanismos, enfim, despertar? Isto não seria um passo para a tal "transformação" da sociedade que, segundo o palestrante, não se deve cobrar do cinema porque ele não é capaz? Não tenho a pretensão que o cinema mude o mundo, tampouco quero impor uma homogeneização das produções com favela, bandido, pobre, classe média e todas as mazelas sociais estampadas, muito menos afirmo que os filmes de "transformação" tenham que seguir uma cartilha de temas. Que catso!! Oi? Ei! Estão todos dormindo com a tevê ligada.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

[Fragmento de anotações do pacote "ahn?"]
Cuba, 12 de março
Monumento a Che
Santa Clara, depois de visitarmos o monumento a Che e distanciarmos uns 300 metros dos guardas, sussurrando:
"Ana Clara, eu gostava dele assim como você. Sempre foi um ídolo para mim, um exemplo, além, é claro, de ser bonito... até um dia que eu descobri a verdade sobre ele"
"'Verdade sobre ele'? Uau! O quê?"
Sussurrando mais baixo ainda:
"Descobri que ele era comunista"
Pasmo.
Esta afirmação, com o grau de suspense "verdade sobre ele", deixou-me um pouco confusa. Ora essa, porque, simplesmente, para mim, isto era óbvio, o ponto de partida; ou, pelo menos, eu creía que era.
A moça só ousou falar isto em voz baixa e depois de andarmos um bom trecho além do monumento [na verdade, é um misto de monumento, museu e casa-de-túmulo]. As pessoas não podem expressar-se aqui e me pergunto que tipo de liberdade é esta. Pergunto da mesma forma que questiono a tal "liberdade" e/ou "democracia" que dizem existir em meu país.
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10 de março
"Ana Clara, preferia que você fosse mais burrinha e soubesse cozinhar. Seria minha nora perfeita"
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8 de março
Quando estávamos embarcando para Manzanillo, à noite, o rapaz que tinha reservado nossa passagem de manhã havia sido preso à tarde. [...]

sábado, 31 de março de 2007

A matemática é sábia: fez regra de três, não de dois. Deve ser por isto que sempre procuro a variável que falta para compor a equação de nosso destino. Bato o lápis na mesa, passo a mão nos cabelos, arrumo meu óculos com os dedos, seguro e solto o papel, incansável.
Quando voltar da briga, passe na cozinha: verá meu boletim com nota vermelha, na porta da geladeira, sob um imã de côco gelado que trouxe da praia.
[Cuba, terça-feira, 19 de março]

Miniatura
Em casa de José Martí tive um estalo. Na verdade, este "estalo" começou no museu da Plaza de La Revolución, passou pelo monumento em Santa Clara e aflorou, ainda de forma primitiva, na casa de José Martí.
A partir do auto-questionamento da cubana que me acompanhava sobre a veracidade do conteúdo de uma carta, que, segundo as especificações, foi a última coisa que Martí escreveu, comecei a dar-me conta dos tipos de de objetos expostos para legitimar a revolução.
Assim foi até que, no museu de Che, em Santa Clara, ao ver alguns objetos, pus-me a pensar como uma coisa tão específica e ao mesmo tempo tão genérica pôde parar ali. Falo, por exemplo, de "a seringa que Che usou no dia X para salvar fulano da doença Y". A não ser que Che já se considerasse futura peça de museu e/ou todos os que estavam ao seu redor, é praticamente inviável conseguir este objeto. Poderemos até considerar a possibilidade de uma obsessão compulsiva de alguém em guardar e registrar coisas... ainda que isto aconteça, há uma certa inviabilidade nesta história. Afinal, uma seringa é uma seringa, em qualquer parte, e a seringa-que-Che-usou-no-dia-X-em-fulano é a "seringa-que-Che-usou-no-dia-X-em-fulano", entendem? Não sei, mas algo soa estranho neste jogo generalidade/especificidade.
Isto tornou-se um pouco mais complexo na casa de José Martí. Em meio a outros cacarecos - como de Che - cheguei a uma "réplica [em tamanho real] da mesa X, do dia y, em que estavam A, B e C assinando o documento W". Aceito que esta probabilidade (até mesmo se fosse a mesa original) é mais viável que a seringa, mas dei-me conta de que entre a réplica e o original, para a grande maioria dos visitantes, não fazia mínima diferença.
Primeiro porque poucos leêm o que está escrito (pus-me a observar os alheios por alguns instantes); segundo porque o deslumbramento e a superficialidade de interesse são os mesmos entre um e outro (supondo, é claro, que seja "verdade" o que é réplica assinado como tal e o original é original assinado como tal); e terceiro porque, a fundo, ambos são réplicas: alguns anacrônicos, outros, nem tanto, alguns assinalados, outros nem tanto.
O estalo se deu mesmo quando vi uma miniatura do púpito de onde falou José Martí para um determinado público. Não estava escrito "réplica" posto que era óbvio, afinal era miniatura. Porém a legenda tratava o objeto como se estivéssemos diante exatamento do pleito onde estava JM.
Por ser tão grosseiro o câmbio entre "réplica" e "original", a linguagem não sentiu necessidade (e mesmo eu não a viria) de apontá-lo. Agora, e quando o câmbio é mais singelo, ou mais difuso, ou mais curto? E se alguém tivesse uma super lente de aumento grudada em seus olhos e visse a tal miniatura em tamanho da coisa? Se tivesse que se guiar pela descrição, esta pessoa era capaz de prostrar-se diante do tal pleito para reverenciá-lo.
Miniatura é miniatura, para o plano das palavras: escrever é reduzir; editar, por supuesto. Como "avisar" as pessoas das transformações/mudanças que ocorrem entre o que se acontece e o que é escrito? Colocar uma nota de rodapé "atenção: o câmbio entre a realidade e o que está escrito pode provocar alterações danosas aos fatos" creio que não é a melhor solução e tampouco despertará a inquietude que gostaria de despertar.
[...]

quinta-feira, 29 de março de 2007

Abre parênteses

A culpa é da vaca
Como se não bastasse a enxurrada de notícias manipuladas para fazer-nos crer que estamos num país melhor, que cresce, que estuda, que isto, aquilo e aquilo outro, eu sou 'obrigada' a ler que a vaca é uma das - prestem atenção - prin-ci-pais responsáveis pelo efeito estufa na atmosfera. Ahn?! Isto mesmo que vocês leram. E o melhor da história: os responsáveis são o arroto e o... ahhnn... bem... as flautulências do animal. É mole? Coitada da vaca, nem pode soltar seus puns e arrotos direito e cientistas alemães já estão fazendo pílulas para conter este gases - metanol - nocivos que saem da pobre bovina. E ainda têm a estapafúrdia de dizer que, com este tratamento, o leite pode até sair melhor.
Até onde eu sei, a vaca só come grama e outras coisinhas que crescem com raíz na terra. Se os gases dela são tão representativos na formação do efeito estufa, os nossos são o que?! Devem atingir a órbita de Marte ou os anéis de Saturno em larga escala e à velocidade da luz.
A vaca existe até mesmo antes da gente, digo gente como a gente-ser-humano-que-pensa. E mesmo se tiver vindo depois, já teria alguma legitimidade em viver neste planeta, afinal, os orientais a têm como deusa muito antes da primeira festa de navidade. Pobre orientais... se soubessem do resultado da decomposição em sua deusa.
E ainda já ouvi "Faz sentido. Há mais vaca do que carro neste planeta". Estou com medo deste animal agora, qualquer hora posso aspirar este ar indesejável e encontrar-me em precárias situações respiratórias e risco de morte. E o leite, meu Deus, e o leite?
Ah, sim, os carros, as indústrias petroquímicas, as grandes indústrias bélicas e outras não são páreos para a grande fúria do arroto e do pum da vaca. Como o capitalismo é capaz de tudo, não vai demorar muito para encontrarmos bovinas entubadas em grandes máquinas para fabricar mais algum produto que nos fazem crer ser necessário. Ou então uma nova coleção veterinária de remédios para o gado "Salve o planeta: Dê Luftal para o seu rebanho".
Não duvido (muito) da veracidade técnica de emissão de gases, mas, por favor, a VACA ser responsável pelo aquecimento global é falta de respeito com meus neurônios.
Vejam isto:
"Relatório da FAO diz que pecuária é responsável por aquecimento global.
Segundo o relatório, o setor é o que produz mais gases componentes do efeito, e se comparados a seu equivalente em CO2 (dióxido de carbono), são mais elevados que os produzidos no setor de transportes"
"se você realmente quer atacar as mudanças climáticas, deveria fazer com que as vacas deixassem de ruminar. De acordo com estimativas científicas, o metano produzido por esses animais é responsável por 4% das emissões de gases causadores do efeito estufa. "
Isto pode causar um racha sério e definitivo no greenpeace: "Como defender as vacas e o planeta ao mesmo tempo?". Situação difícil... humpf.
Metas para desenvolver alternativas de combustível? Pressão nos EUA para assinar (e cumprir) o protocolo de Kyoto? Investir em transformações radicais no consumo de energia? Etc etc etc... passam longe, a pauta e a culpa mesmo é daquele animal insolente que só sabe comer grama, mexer o rabo, fazer sexo, arrotar e soltar gases.
.
Desculpem, não resisti.
.
Fecha parênteses

segunda-feira, 26 de março de 2007

Depois de uma enorme e turbulenta onda, da água repuxada, dos caranguejos arrastados e da respiração da areia, pisei com meus pés descalços sobre a realidade úmida. Disposta a correr milhas e milhas de palavras inúteis para contar-lhes de minha viagem, fui impedida. Mal dei o primeiro passo e já tive que me acostar na beira da praia. A dor era grande: um caco de vidro pontudo e afiado estava enterrado na palma do meu pé direito e o sangue escorria incessantemente. Sentei-me então devagar na areia, cruzei as pernas, levei os olhos próximo ao membro lesado e pus-me a observar o objeto que obstou minha longa jornada. Da imensa dor que brotava dali, de toda a operação plaquética para expulsar o estranho, de toda a inflamação que estava principiando, tirei forças para arrancar à força aquele pedaço das chaves da minh'alma. Enquanto meus olhos cerravam de dor, minha respiração trancava o oxigênio e minha boca calava o grito, um homem pousou levemente suas mãos sobre mim. Em meio à confusa assimilação de sensações, senti o vidro sair e o homem desfazer-se em vento. Aliviada, percorri as mãos por trás de mim para descansar o ventre ao céu e encontrei uma rosa. Ao longo do caule, em letras minúsculas, pude ler:
"És rosa
e não consigo oferecer-te brisa
Dou-lhe o vento de toda minha fúria
para que possas tocá-la sem sentí-la"
[Volto em breve com alguns trechos do meu diário em Cuba]

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Trocando de águas
pré-relato da viagem à Cuba

Por algum tempo não poderei mais compartilhar das águas navegadas pelo mar virtual. Num movimento não tão repentino, porém abrupto, lanço minha âncora neste post que não representa o fim do Ás, apenas um ponto de silêncio com o tempo de três colcheias e duas semifusas.

Deixo todos os pacotes ortográficos, morfológicos, sintáticos e pontuais estendidos no convés ao sol, baixo a vela da semântica e acomodo-me neste porto que, sei, não é muito seguro. Para não deixar-me tão vulnerável, lançei minha vírgula ao fundo do mar, amarrada num leve fio -- porém resistente -- de coesão, atei-o à minha nau e sentei-me numa cadeira confortável no centro da proa.


Garanto: procurei um lugar agradável, com um cais bem bonito, um horizonte perdido, muitos amores partidos e vindos, uma maresia insolente e um tempo encontrado. Aquele tempo que você só reconhece em lugares perdidos... e abandonados... aqueles lugares onde a alma de todos, menos a tua, habita; e você é capaz de sentí-las todas, exceto a tua, profundamente. Até que, no último momento, na despedida, você a nota: presa ali... exatamente naquele lugar onde você achava que não a sentia.

Voltem quando quiserem, minha embarcação estará atada ao chão, e eu com a cabeça e o corpo nos ventos, em outras águas... mas deixo a cadeira de praia para leitura estendida pelo barco sedento por navegação, porém consciente do interlúdio. Sintam-se à vontade.

E se deste novo céu com novas águas puderem brotar novos escritos, voltarei tão brevemente que, mal você se estendeu na cadeira e sentiu os olhos ofuscados pelo sol, já estarei com o timão na mão, recolhendo a vírgula, içando a semântica e navegando em mares profundos e turbulentos recheados de Ás, mentiras e cores.


Hasta la vista

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Foco
Não que eu seja adepta da técnica aplicada aos fios de algodão da realidade que, com um sopro de dúvida, não sustenta nem suas próprias convicções dirá as aplicações.
Mas não resisti em estabelecer certos paralelos.
Fui cobrir uma palestra sobre Engenharia de Produção: carreira, entrevista, profissional de sucesso, valores, marketing, ativo, capital e toda a lambança de jargões empresariais que contribuíram definitivamente para a minha ascensão espiritual: uma discreta auto-sessão de "á-huuumm" para me situar, quem sabe, em meio àquele emaranhado de assuntos "profícuos".
No entanto, nada a temer, o palestrante era bom. E logo logo ele tratou do tema de forma mais concreta e amarrou todas as abstrações. Numa dessas amarrações (tenho que confessar, eu participei ativamente da palestra), ele falou sobre foco e estabeleceu-se um alvoroço em torno dos pressupostos e/ou pontos de partida do Brasil -- que não tem nenhuma perspectiva de crescimento intenso nos próximos, ai, segurem, cinquenta anos -- em relação à Índia e a China que, segundo as estatísticas malucas dos economistas, têm perspectivas gigantescas de crescimento. Papo vai, papo vem, opinião vai, opinião vem, ego vai, ego vem, cala a boca vai, cala a boca vem, o problema era foco. Vou enfatizar: FO-CO. Ou seja, o Brasil não tinha FO-CO, ao passo que os outros países possuíam um plano de desenvolvimento e todos aqueles blá-blás sociais e econômicos. Em poucas palavras, se o Brasil focasse em um, apenas um, atenção, vou enfatizar: apenas UM ou, no MÁ-XI-MO, três aspectos para investir toda a sua atenção, todos os problemas estariam resolvidos.
Pergunto: alguém acredita?
Outro dia, li um desses textos melosos sobre amor: juras eternas, meu amor pra cá, minha querida pra lá, eu te amo, você é tudo pra mim e toda a lambança de jargões românticos que contribuíram definitivamente para a minha ascensão espiritual: uma discreta auto-sessão de "ai-que-saco-mas-vamos-continuar" para me situar, quem sabe, em meio àquele emaranhado de assuntos "profícuos".
No entanto, nada a temer, o escritor era bom. E logo logo ele tratou do tema de forma mais concreta e amarrou todas as abstrações. Numa dessas amarrações (tenho que confessar: de alguma forma, aquilo estava me comovendo), ele escreveu sobre foco e estabeleceu-se o alvoroço (dos leitores) em torno dos pressupostos e/ou pontos de partida da leitora-eu -- que não tem nenhuma perspectiva de entendimento nos últimos ai, segurem, vinte e dois anos -- em relação ao leitor-eu e ao bom-leitor-eu que, segundo as estatísticas malucas dos machistas e feministas (que são machistas, ou seja, dá no mesmo), têm perspectivas gigantescas de entendimento. Papo vai, papo vem, opinião vai, opinião vem, superego vai, superego vem, loucura vai, loucura vem, lucidez vai, lucidez vem, o problema, segundo o escritor, era foco. Vou enfatizar: FO-CO. Ou seja, a leitora-eu não tinha FO-CO, ao passo que os outros leitores-eus possuíam um plano de desenvolvimento e todos aqueles blá-blás intelectuais e "esnôbicos". Em poucas palavras, se a leitora-eu focasse em um, apenas um, atenção, vou enfatizar: apenas UM ou, no MÁ-XI-MO, três aspectos para investir toda a sua sedução, todos os problemas estariam resolvidos.
Pergunto: alguém acredita?

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Era uma rua inacessível ao pensamento.
E deste não pensar, não existia coisa alguma.
Não era larga, nem estreita pois isto são qualidades de quem pensa e lá não tem espaço.
Aliás, espaço tem – vazio.
E deste não ocupar, não existir e não pensar surgem coisas que existem somente neste lugar não-pensante.
Nem jardins, nem flores, nem amoras, nem amores, uma rua
apenas.

Para existir paraísos é preciso pensar
E pensar muito, ora essa
Vamos até o inferno e descobrimos o que é a dor
Para, aí sim, sentirmos o paraíso
Só sentimos grandes prazeres quando já experimentamos grandes dores
Viu só?
Duas coisas para sentir uma
Na minha rua, não
Sente-se tudo, pensa-se em nada
E não é por preguiça
É por não caber

Ou, simplesmente, para zombar do meu pensamento
Que tem em si a pretensão de preencher todos os espaços
Conhecer todos os lugares
E orientar todos os sentimentos.

Esta rua ele não conhece
Ou porque não sabe
Ou porque não cabe
Ou porque ela não existe mesmo

Mas o pensar insiste em procurá-la
E a cada tentativa infundada
A rua abre-se em contentamento
Um raio de sol ilumina os ladrilhos
A esquina esboça um largo sorriso
As águas espalham-se pela calçada
E todos os meus sonhos são refletidos

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Noves fora
De toda a minha estupidez, guardo a melhor parte para quem nutre a indiferença. Então esfrego este melaço com gosto azedo nos meus olhos para que eles não vejam o quão charmoso você é. Assim garanto os adjetivos orgulhosa, estúpida, insensível e, ah, claro teimosa e cabeça dura.
Sinto que há algo errado nesta regra de três.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Contrações

Chegou o momento em que é possível sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados e ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo: rachei. De um revertério compulsivo nas minhas entranhas, nasceu incontrolavelmente várias pessoas dilaceradas em pedaços espalhados pela minha alma. Não há temor, nem razão, só o grito da necessidade. Não dessas inventadas por aí, mas daquelas que saem lá do fundo, exatamente onde toda mulher se descobre mulher... e mãe: o útero.
Por um critério nada rigoroso, decidi contar que o nascimento se deu via uterina. Apenas para criar um paralelo biológico de uma implosão da alma, assim atribuo um caráter racional para este monte de micro-corpos que começam a ganhar vida própria, como se estivessem numa incubadora ou, num plano mais interior, criando raízes férteis em solo estéril. Nada a ver com o que realmente aconteceu, visto que muitos vestígios neurais, viscerais e racionais também foram encontrados no último corpo delito que meu super ego fez (detesto quando ele faz isto) em meu interior.
De qualquer forma, este aglomerado de pedaços de carne humana – espalhado pelo mármore frio e gelado do meu próprio eu – começa a borbulhar e a sacolejar intermitentemente deixando meu outro eu (sim, tenho vários) horrorizado. Este último eu, o apavorado, é o eu que todos acham que eu sou.
E como quem levanta de um sono profundo ou de um eterno esperar-desabrochar aquele monte de coisa amórfica começou a tomar forma – e forma de coisa.
Enquanto o eu – este aqui que vocês conhecem – vendo tudo isto, resolveu dar uma volta, fumar um cigarro, arejar as entranhas e calcular o ponto de fuga mais próximo, uma criança foi deixada no mármore frio e gélido cheio de pedaços pululantes de vida e energia. É ela quem vê tudo, com o medo numa mão e a curiosidade na outra. Estas novas coisas que – sabe a criança – tornar-se-ão pessoas rastejam-se, por enquanto, pela vil e cruel solidez de minhas edificações; e a infante assiste a tudo impassível.
Até que algum eu (ou a própria criança) não lhe atribuam nomes, estes embriões sofrerão todos os espasmos que algo sem vida e, por assim dizer, sem necessidade de piedade, pode sofrer e a minha imaginação é capaz de criar.
É assim, como toda dor do parto; e, como todo fruto do mesmo, as pessoas, se nascerem, terão seus cordões arrancados impiedosa e violentamente. De modo que adquirirão autonomia, vida própria e plena liberdade, sem vínculo algum com aquela que a gerou. Isto é perfeitamente possível, pois é uma liberdade e autonomia dignas das coisas que, apesar de existirem, não existem.
Por enquanto são coisas. E, por serem, já existem. Já têm verbo, faltam-lhes os nomes. Assim sendo, não existem. Se nomeadas, serão pessoas, voltam a existir, mas não serão necessariamente eus, deixando de novamente.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

O tempo cabe num ponto final
e o futuro é um monte de reticências jogadas no céu.
Como quem juntasse todo o tempo do mundo
na mão em concha
e assoprasse inadvertidamente todos os pontos finais
que se perdem reticentes no horizonte
Não adianta buscar
estão todos perdidos
Adianta, quem sabe, voar

sem vento
sem plano
sem fogo
sem casa
sem pai
sem mãe
sem mão
sem cão
sem sim
sem não
Sim, com asa
voar e voir

No instante em que o verbo
elE,
que se uniu à virgem vírgula,
você dominar


[exercício de preparação para leitura ou "homenagem a um livro não-lido" ]

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

No meio do caminho há duas mãos

Escrevo por medo das palavras e da ausência delas.
Escrevo pelo medo do silêncio reprimido e do verbo mal usado; do silêncio mal usado e do verbo reprimido.
Escrevo para capturar alguma coisa no caminho entre o coração e o cérebro. E no meio do caminho, há duas mãos. Uma pedra em cada uma.
Forço todos os elementos da inter-comunicação, nada eficiente, entre cabeça e lado-esquerdo-do-peito a descerem alguns centímetros em direção à ponta dos meus dedos e disparo todas as fúrias sem saber exatamente a origem delas.
Mas alguma coisa anda errada: pedras se digladiam no cérebro, o coração se preocupa com a sintaxe, e as mãos estão tão meigas quanto qualquer suspiro doce do primeiro amor de uma criança.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Entre dois infernos
Há um paraíso
Que a menina observa atrás da grade

Várias borboletas circulam por ali
Umas rápido, outras devagar
Algumas duram muito tempo
Outras só se sabem que passou
Pelo cheiro de pouco ar remexido

No centro do paraíso
Há uma deusa
Cercada pelas melhores flores,
plantas, águas, ares, cores e sabores
Um altar em que se impõe o totem
Rodeado das mais belas coisas do mundo

Já o resto do lugar carecia de cuidado
Como quem oferece tudo
E até o riso lhe é negado

Neste exato momento
A menina atrás da grade teve um sonho:

Tornou-se borboleta
atravessou os liames de ferro
e soprou de longe um gostoso ar de açúcar cândi
O pássaro reverencioso, antes prostrado diante do culto,
Sentiu naquela terna brisa, trazida pelo ocaso dos ventos,
uma felicidade tamanha
Como nunca havia sentido
Então ele tornou seus olhos para o céu
Sacudiu as asas
Alçou vôo e...

De repente, a menina acordou
com o estilhaço do medo dele batendo nas grades
O pedaço viera voando lá de alguma explosão
dos confins de um dos infernos

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Para Destino Certo,
"Está-se junto com a mulher que se ama, fala-se com ela. Então, semanas ou meses mais tarde, quando se está separado dela, volta à mente aquilo de que se conversou. E agora o tema está ali, banal, cru, sem profundidade, e se reconhece: somente ela, que por amor se debruçou profundamente sobre ele, sombreou-o e protegeu-o diante de nós, de tal modo que, como um relevo, em todas as dobras e todos os ângulos, o pensamento vivia. Se estamos a sós, como agora, ele jaz raso, sem consolo e sem sombra, à luz de nosso conhecimento"
Walter Benjamin, in "Rua de mão única"

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Paletó de bolinha amarelinha

Terminei de ler "memória de minhas putas tristes", do García Marquez. Se o fosse escrever, intitularia "memórias minhas puta tristes" e deixaria um traço do jargão deste meu século perdido e condenado. Um bom romance, daqueles que te incomodam na poltrona e te fazem revirar em todas as posições para encontrar um lugar confortável. Impossível, o desconforto está nos olhos, ou melhor, nas páginas quandos são encontradas por eles.
O autor trata do amor "e por mais que lidemos com esse sentimento como se fosse um paletó dois números acima do nosso, apenas ele e tão-somente ele, o amor, nos faz humanos..." escreve o "orelhista".
Incluo-me entre as pessoas que não conseguem vestir este paletó, mas, no meu caso, eu o acho pequeno. Dois números abaixo. De modo que todas as vezes que tento vestí-lo deformo-o. Um desastre: pula botão, esgarça costura, rasga tecido ou não passa nem pela cabeça. Se entra por um braço, não alcança o outro e, se com muito custo, consegue, fico presa entre meus próprios ombros. Haja esforço para tamanha peça, há quem diga (ou melhor, jogue-me na cara) que nunca vou vestí-lo enquanto estiver com o casaco grosso e espinhudo do meu orgulho. Ora essa, mal sabem eles que este casaco eu só visto em ocasiões especiais. E se, mesmo assim, com muita paciência e dedicação, consigo encaixar todos os meus membros neste vestuário tão esquisito, sinto-me nua como Ana Maria ao olhar-se no espelho, depois de entrar na cabine.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Dois hambúrgueres, sem alface, nem queijo, nem molho especial, muito menos cebola e picles num pão com gergelim
Detesto quem repete, quem recorta uma frase do texto e diz “adorei esta frase”. Sim, acabei de fazer o mesmo e eu posso me detestar por isso, não? Detesto quem não sabe o que dizer e se agarra às pílulas de auto-ajuda para sobreviver. Sim, eu faço isto, de vez em quando, e daí? Continuo não gostando das pessoas que fazem isto, como não gosto do meu eu desesperado quando não vejo mais o brilho dos olhos dele em mim.
Como defesa, eu analiso, disseco, destrincho, reviro e biopsio todas as entranhas dele. Nenhuma vírgula escapa-me, nenhuma metonímia, nenhuma metáfora, nada. Tudo nele está escrito em cada escolha que ele faz. Eu vejo até a reticência perdida na retina escura. Defino cada ponto final com qualquer hesitação e enxergo a conclusão do capítulo só de vê-lo dormir. Para cada canto que ele olha há um parágrafo, para cada gesto uma síntaxe e para cada silêncio uma obra enciclopédica de 16 volumes.
Daí aparece a mãe Dinah, retira uma frase de todos os meus escritos e acredita ter encontrado a solução. Não é bem assim, dona bruxa sabichona, seus astros não entendem nada de gramática. Eles não vêem que minha oração subordinada é dirigida aos céus e se perde na coordenação precisa das estrelas. Para entender meus sentimentos, é preciso encontrar o amor espremido em duas fatias grossas de ódio com intoleráveis advérbios, adjuntos, adjetivos, vocativos e todas as perfumarias sintáticas enroladas num canudinho e fincadas – de fora a fora – neste sanduíche indigesto com uma cereja-romance na ponta.

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

É muito fácil refutar minhas idéias. Facílimo. Até uma criança, em sua mais profunda inocência, desconstruiria, sem dificuldade, todas as minhas conjecturas acerca de qualquer coisa com a mais banal das perguntas. Simples. Meus textos são falhos. Como tudo é falho. Pensando sobre isto, tentarei justificar-me.
Antes, ponderações: não vou provar que meus textos não são falhos – portanto, se houve este lampejo, pode parar por aqui e aguardar outro post; esta justificativa será tão limitada quanto qualquer outra; o motivo que exporei aqui serve como mote para todos os escritos anteriores, presentes e posteriores.
A minha constatação partiu de uma premissa simples: meu pensamento está preso nos grilhões da linguagem. Estou ciente de que não há pensamento sem linguagem, e também de que o primeiro depende visceralmente da segunda. Explico-me: suponhamos que a defesa de qualquer “pensamento” meu fosse passível de exposição dentro da minha própria mente. Ou seja, todos os “ataques” a qualquer idéia minha se daria no nível (imaginário) do meu subconsciente; não seria necessário, portanto, transpô-la para uma linguagem “externa”, pois o debate seria “interno”. Se assim fosse, acredito que eu, ou até mesmo todo mundo, teria a inimaginável e praticamente inalcançável capacidade de defender rigorosamente – sem cair em contradições, reducionismos, exageros metafísicos ou pragmáticos, escassez teórica, etc – todas as suas idéias e torna-las-ia irrefutáveis . No entanto, daí a genialidade de poucos autores, o cerne do raciocínio está em justamente fazer esta transposição entre o pensamento e a linguagem. E quanto mais clara é a passagem, maior a capacidade sintética do autor.
Quanto a mim, ainda sinto-me (e assim estou) presa pela jaula da linguagem. Raras vezes consigo abrir uma fresta e libertar algum pensamento, mas está tão putrefato que, não é difícil, quando sai, já não faz mais sentido algum. Como isto se chama? Nua e cruamente: ignorância.
Imaginemos que há um momento anterior à transposição. Uma espécie de reserva de “pensamentos” que qualitativamente não representa nada, pois não passa de um esboço estúpido, um zigoto amorfo. À medida que as hastes da linguagem vão sendo retiradas – ou seja, utilizadas –, elas oferecem forma àquele potencial hiberno (lembrem-se que, como “zigoto”, sua capacidade de reprodução e crescimento é intensa) e luz para o seu desenvolvimento, já que o tira da “gaiola”.
Para entender a complexidade deste nascimento, é-me necessário também salientar a disposição das hastes que compõe a jaula: elas não são arranjadas de forma vertical e horizontal organizadas perfeita e coerentemente. O entrelaçamento entre as diferentes variáveis que compõe a linguagem cria um emaranhado complexo de significantes, significados entre jogos semânticos que, por muitas vezes, a retirada de uma simples “haste” depende da articulação e, portanto, conhecimento de várias outras “hastes”. Todavia, a consciência prévia de “hastes mestras” pode ajudar e muito a desencadear uma série de desobstruções em larga escala, como se encontrássemos o fio exato para desfazer uma longa meada.
Há exceções, claro, como alguns pensamentos cuja estadia deve permanecer “fermentando” e hibernando na jaula para sair com mais potencial ou, no mínimo, com maior poder de síntese. Afinal, abrir a jaula para um monstro raivoso, ainda torto, com cara de Fred Kruegger, instinto de Jack, o estripador, é preferível manter a jaula trancada para lapidar tamanha estupidez. De resto, muitos de meus pensamentos ainda borbulham dentro da jaula, poucos são os que saem, pois minha linguagem é muito limitada e não quero arriscar um colapso absoluto das poucas idéias sãs que brotam de mim.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Menina estranha

No segundo ano de faculdade, minha maior inquietação era saber se tudo aquilo que interpretamos de um determinado livro, música ou poema – geralmente clássicos – o autor realmente pensou para escrever. As respostas variavam de acordo com a aproximação espiritual e afetiva das pessoas questionadas com o autor ou do “status intelectual” da obra na sociedade. Por exemplo, um Charles Baudelaire, com certeza (segundo algumas pessoas que possuem certa autoridade no assunto), pensou, re-pensou e re-re-pensou em cada artigo, adjetivo, advérbio, metáforas e metonímias; Chico Buarque, idem; João Cabral, idem e etc. Como disse, varia. Certas pessoas não acreditam que Victor Hugo tenha tanto “status” (desculpe, mas falta-me vocabulário para definir uma posição não limitada perdida numa nuvem grosseira de ego, mesquinharia, esnobismo e, raras vezes, crítica) assim como Fernando Novais e outras figuras não tão conhecidas assim. Há também quem tenha me dito que este questionamento é irrelevante.
Eu não tenho a mínima autoridade e, tampouco, autonomia no assunto, portanto só colhi opiniões, impressões e Pilatos – aqueles que dizem “eu acho porque gosto” e lava as mãos. O que diminuiu minha ânsia e, conseqüentemente, trouxe-me uma explicação um tanto pertinente, foi uma palestra.
Não necessariamente tu-do o que autor escreve, ele pensou numa interpretação segunda, terceira ou quarta. Porém, o trabalho de quem analisa minuciosamente um texto não é em vão, afinal, de uma forma ou de outra, o autor/obra é a expressão do seu tempo. E, a partir da imparcialidade que a distância do tempo e da própria obra (por não ser o autor) permite, podemos encontrar dados do inconsciente coletivo da época que não passaram, necessariamente, pelo crivo racional do escritor. Sendo assim, ao escarafunchar textos literários, da lagarta que come o tempo, pode nascer uma interpretação-borboleta e, melhor ainda, que voe sozinha.

Cara estranho
Dado isto, pus-me a pensar sobre os considerados “lixos” em massa que a nossa sociedade produz atualmente. Afinal, convenhamos, analisar textos e obras para entender um século de explosão intelectual é uma coisa, revirar as carcaças da produção cultural deste início de século “perdido” e “condenado” é outra. Sim, que me chamem de abutre, mas dirijo-me às produções terrenas com vontade, curiosidade e uma certa esperança. Pois a nostalgia pedante, a arrogância do culto e a soberba intelectual causam-me náuseas muito mais profundas de modo que, nem com esperança, vontade e, muito menos, curiosidade ouso bater minhas asas pretas em sua direção.
Isto posto (bingo para quem conseguiu ler até aqui), posso falar a respeito da música “Cara estranho” do Los Hermanos. Não estou aqui para julgar a qualidade musical, muito menos, a capacidade do compositor e, menos ainda, venerar ou subtrair qualquer atributo (bom ou ruim) da obra. Logo que ouvi, apesar de não ter entendido muita coisa além da primeira estrofe, percebi que há algo notável e latente: a música trata do indivíduo da sociedade moderna (se é eficiente ou não, deixo para vocês). Escolhi alguns trechos:

“Olha lá, que cara estranho que chegou
Parece não achar lugar
No corpo em que Deus lhe encarnou
[...]

Exibe à frente o coração
Que não divide com ninguém
Tem tudo sempre às suas mãos
Mas leva a cruz um pouco além
Talhando feito um artesão
A imagem de um rapaz de bem”


Já que autor/obra é expressão do seu tempo...

“Cara estranho...” faz referência à esquizofrenia, várias de nossas relações humanas, atualmente, são marcadas por algum traço esquizofrênico. O fato de “não achar lugar...” é uma das principais características do neurótico que não se encontra em si mesmo. Aliás, em outro trecho a música também diz “Periga nunca se encontrar/ será que ele vai perceber/ que foge sempre do lugar”.
Quando o autor diz “no corpo em que Deus lhe encarnou”, ele já aponta a influência da Igreja Católica (ou qualquer outra instância religiosa que tenha Cristo como crença, pois, mais à frente, ele se refere à cruz) na formação do indivíduo. No trecho “exibe à frente um coração”, podemos encontrar referência ao amor, sim, mas daqueles enlatados que se compra na loja Claro por R$ 49,90 com mil reais de ligação grátis como a própria música deixa nas entrelinhas. “Que não divide com ninguém”, narcisismo, ou seja, o amor a si mesmo. Isto soa familiar, não? Podemos todos comprar na loja Claro, mas a nota fiscal vai no seu nome, sa’qualé?
“Tem tudo sempre às suas mãos”, ora essa, isto dava um livro. Não tivemos um século com tantas, hum, “facilidades” em vários aspectos. Para os pouco abastados, crédito em abundância. Para os muito abastados, poder sobre os outros, cada vez maior. No plano tecnológico, nunca pudemos fazer tantas coisas com apenas um clique. Nunca foi tão fácil conseguir mulher, jogo, dinheiro e produto. Tudo virou mercadoria e, pior, comprável com cartão de crédito. Quanto aos nada abastados, tudo está negado desde que o capitalismo ascendeu.
“Mas leva a cruz um pouco além”. Arrá! Este trecho é um dos que mais gosto. O capitalismo é perverso, mas as pessoas não podem ser ou, pelo menos, parecer. Neste ponto, entra o ideal de auto-sacrifício e filantropia católica.
Está implícito que o cara estranho carrega uma cruz seja ela da sua própria existência, ou do peso social que carrega cada vez que compra um produto do shopping, ou da Igreja que trabalha o sentimento de culpa e pecado constantemente, ou, estrito senso, a própria cruz de Cristo. Esta linha de raciocínio segue ao longo do trecho “talhando feito um artesão”. A oposição ao que é industrial – “homo-faber” – remete o indivíduo a um estágio anterior da mercadoria, da indústria, enfim, àquele romantismo da produção artesanal “ingênua” e familiar. Ao talhar, com as mãos de um artesão, “a imagem de um rapaz de bem”, a música conclui, neste período, a formação do indivíduo no plano moral. Se o indivíduo tem que talhar esta imagem, isto significa que há um elemento de força contrária perverso e mal, no caso, o capitalismo ou a própria essência humana. Pois, de uma forma ou de outra, a música esclarece que este elemento contrário é uma “cruz” a ser carregada imbricando assim bem e mal, numa relação ambígua e dialética.
Deixo com vocês a segunda estrofe – também muito interessante. Posso adiantar que fala sobre o esforço do homem em relacionar-se socialmente, sobre a influência da TV (das imagens construídas que ditam comportamentos de massa) e otras cositas más.

Aumentem o som!

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

De volta à civilização, um presente de final de ano
Eu gosto desta foto. De um lado, no primeiro plano, São Paulo. Do outro, aquela estradinha ao fundo, Minas Gerais.
Sempre gostei de limites: de tê-los e de superá-los. A geografia é um ótimo exercício e um dos quais eu mais me divirto. Conhecer rios de fronteira, estradas limítrofes, pontos zeros, divisas entre países, estados, municípios -- estes últimos nem tanto, dadas minhas andanças municipais rotineiras -- é programa de satisfação garantida. Numa abstração maior, ver o ponteiro maior do relógio arrastar-se ansiosamente em direção à zero hora do dia1 de janeiro também causa-me um certo êxtase inexplicável. Não que em algum lugar de minha mente tudo isso não passe de construção massificada para garantir esperança num mundo tão condenado como este, mas, como uma espécie de auto-alienação para auto-enganação, eu levanto meu copo de champagne e faço promessas de um ano melhor.
Bom, de lá para cá, daqui para lá, tanto faz. No limite, a graça é ir e vir sem saber exatamente onde estamos, mas com a precisão que a localização nos permite. Divirtam-se com o clima da foto que, por sinal, o dia estava maravilhoso. Um presentinho de final de ano para perdoar a ausência (sentida será?) e prometer voltar à produção bloguística assim que desfizer minhas malas. Quanto a mim, estou perdida em algum canto do mundo ou da foto, mais uma vez, tanto faz.