sábado, 28 de abril de 2007

Eram em três. Enquanto Vérges procurava incessantemente dar conta de duas mulheres afoitas por sua atenção, uma instância superior, onisciente, onipresente observava milimetricamente cada passo daquela conversa: eu, a narradora. Mas, antes que me julguem prepotente (nós, os narradores, sempre o somos, porém dificilmente explicitamos. Afinal, atualmente, não é muito vendável não fazer com que o leitor acredite que ele é o máximo), preciso avisá-los de que eu sou uma das mulheres da conversa. Compartilho daquele momento, mas tenho poderes – que a ficção me permite adquirir – de, a cada quinze minutos, sair de mim mesma e situar-me num ponto superior, acima daquelas três cabeças banais jogando conversa fora. O ângulo é exatamente o centro da mesa, superior aos mortais, como se simplesmente eu tivesse amarrado minhas ancas nas vigas do telhado e observasse tudo como um anjo pelado tocando trombetas (apesar de procurar manter o silêncio durante a ascensão).

Vérges dirigia todo o assunto da conversa com uma destreza artesã. Cada movimento de sua mão era capaz de provocar uma mudança brusca nos temas tratados, uma parada repentina ou um silêncio absoluto para dar espaço às suas colocações. Tinha o controle dos olhos e ouvidos das mulheres em cada gesto de seus dedos, em cada indicador apontado, em cada afago no cabelo. Frolaine era uma; e eu, a outra. Frolaine contestava todas as observações de Vérges, mas era logo vencida pela levantadinha do óculos e dois argumentos. Sem base, não havia discussão. Quanto a mim, só posso dizer durante a ascensão; afinal, qualquer colocação agora, soaria como um falsete tanto em relação a mim, quanto à Frolaine. Posso dizer que eu admirava cada gesto daquele rapaz que prendia a minha atenção, não mais do que isto.

Vérges, Frolaine e eu tínhamos muito em comum. Era a isto que se devia aquele encontro. Frolaine sempre acreditou que conquistaria Vérges com suas implicâncias, apostara toda a adolescência em Vérges, mas ele sempre a tratara como uma irmã e, ficar com ela, segundo sua própria ironia e sarcasmo, era incesto. Eu desprezei, durante a mesma adolescência esperançosa de Frolaine, o próprio Vérges, enquanto este rapaz, hoje preferido entre as mulheres, acusa-me de tê-lo ensinado a crueldade com as mademoiselles.

sexta-feira, 27 de abril de 2007


E viro caixa de lápis de cor
não para desenhos e humores de mimeógrafo
mas para palavras e imagens coloridas
além do teu lápis e humor cinzas

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Quando o mundo todo explicado perde a graça
Vende-se o mistério

À parte do esnobismo sociológico, gostaria de fazer constar, a partir das minhas humildes observações, algumas, como diria, curiosidades que, quase sempre, me assolam a ponto de torná-las mais um fragmento do ás (neste caso, o assunto está mais para o “mentira”). Como é sabido, não assisto televisão. Não por exibicionismo intelectual, não a considero a disseminadora indiscriminada da imagem da besta, nem a responsável por todas as mazelas culturais/educacionais do país, tampouco a (única) alienadora malvada desta pobre sociedade vítima de todos as mídias, mas por uma fobia adquirida a ponto de não agüentar ficar mais de cinco minutos sentada no sofá. A não ser por filme ou jogo de futebol, nada mais me apraz nesta mídia e todo o resto irrita-me. Mesmo assim, não pude deixar de constatar, por este e outros meios, uma mania nacional – e desconfio que até internacional – pelos casos de mistério. Séries de investigação criminal, papiros perdidos, talismãs roubados, códigos indecifráveis, fenômenos extraterrenos, enigmas religiosos e todo o pacote de roteiros que incluam algum elemento aparentemente inexplicável vêm se tornando verdadeiros best-sellers. Não é preciso citar “Código Da Vinci”, não é? Ok, já foi. Citado está. É certo que sempre houve um interesse expressivo também em Sherlock Holmes, Agatha Christie e companhia, no entanto, muitas vezes, reservado ao seu grupo exclusivo de apreciadores. Atualmente, como de praxe, a massa pasteurizada de produtos com este enfoque está com maior espaço, eu diria, todos os espaços das prateleiras. Uma das explicações para tal fenômeno, creio, não está muito longe.

A indústria cultural, sabe-se, apenas um mecanismo de toda esta engrenagem para fazer-nos crer que o mundo é maravilhoso e se você não concorda é um aborígene, procura oferecer – e consegue – todas as explicações sobre o mundo. Problemas no amor? Tome uma coca, compre um livro de auto-ajuda ou se acabe no shopping. Com dinheiro? “Como casais enriquecem juntos”. Felicidade? Veja um filme bem água-com-açúcar e ele te dirá. Relação humana? Psiquiatra (e um bem bonitão, igual ao do cinema). Problema social? Doação para ONG. Poderia discorrer aqui horas a fio os mecanismos de cerceamento das questões relevantes e, por ora, desconfortáveis que a indústria cultural, de alguma forma, tenta resolver, ou melhor, resolve aparentemente. Porém, por contradições próprias do sistema, tudo está explicado e, mesmo assim, as pessoas estão “descontentes”. Todos queriam explicação, agora a têm (os que se deixam crer) e, catso, simplesmente a-ca-bou a gra-ça. Como resolver isto, afinal, parar de consumir não podemos? Simples, tchan-ram, os enlatados que falei. Transporta-se a ânsia que mesmo o mais selvagem dos homens (se homem o for) tem, um dia, pelos “mistérios” entre o céu e a terra para as telas do cinema/televisão/computador. As “dúvidas” tornam-se compráveis, portanto controláveis e inofensivas. Não é um fenômeno nada novo, não é a primeira nem a última vez que acontece, porém, mesmo com todos os esforços de homogeneização e pasteurização do pensamento e dos homens, a indústria cultural ainda rebola para que o sistema supere suas próprias contradições. Tá, não foi um rebolado que exigiu muito esforço, mas, como disse, é uma constatação enquanto a gente vê a roda viva girar.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

O amor que trago: dores profundas enroladas num papel bem piegas de pouco caso.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Apresenteando
23 anos.

domingo, 15 de abril de 2007

Jardins suspensos

Para descrever o inferno usamos palavras feias. Pelo menos, é assim que muita gente faz. Reúne um grupinho considerável de léxicos horrendos e pavorosos e pronto. Diabo, demônio, capeta, cão, capiroto, coisa-ruim, cramulhão, dor, tortura, desgraça, humilhação, ferra brás, pé de bode, satanás, sete peles, tranca rua, tinhoso, sofrimento, pacto, morte, angústia, desespero, pavor, medo, pânico, orgulho, luxúria, gula, tentação, cobiça, inveja, desprezo, crueldade, vileza, gordura quente no olho, pimenta em ferida de leproso, faca nas entranhas e o inferno está montado. Acrescente-se a isso, é claro, já que é para ser infernal, algum medo ou receio da pessoa a quem queremos impressionar elevado à enésima potência. A partir deste quadro básico, com poucas variações, acreditamos que todas as coisas horríveis do mundo estão descritas e resolvidas. Não se enganem, meus caros. O inferno mesmo está presente até nas paisagens mais belas com borboletas voando, jardim planejado, céu limpo e vista para o mar. No arco-íris que se abre, na flor que brota e na graminha aparada. Basta olhar para o lado, quando seus olhos saem do outdoor de propaganda do novo condomínio.
21 de março
Havana Cuba
1º dia

Várias cenas tentei registrar em minha memória para passá-la aqui, mas foram tantas que guardei que uma sobrepõe-se à outra e não consigo mais marcar o exato ponto em que elas chamaram-me a atenção. No máximo, posso dizer que agora tenho vários pontos de atração (das muitas coisas que captei) coberto por um manto difuso do excesso de novidade. Este fenômeno, este sim, sintetiza a enxurrada de momentos experimentados até agora: a vista aérea noturna de Cuba.
Assim que soube, pelo televisor do avião, estar sobrevoando o solo cubano, agarrei-me à janela e lá fiquei. A lua, quando saí de Panamá, estava branca e parecia escancarar um sorriso largo de comprimento e curto de altura. À medida que nos aproximávamos de Cuba, a lua tornando-se-ia amarelada e cada vez mais desavergonhada.
Lembro-me de ter olhado para ela logo após o aviso de cerrar os cintos para o pouso: era como se os astros sorrisem para mim. Ainda tenho dúvida do caráter deles, mas, bem ou mal, era uma saudação de boas-vindas.
A partir do aviso do piloto, concentrei-me em observar o solo. Nada de grandes concentrações de luz, prédios altos, muitos espaços, cidades planejadas, nada. Como se jogassem um manto preto sobre uma cidade cheia de luz e apenas alguns pontos se destacassem sobre ele. Assim parecia o trecho entre o oeste e o leste da ilha. Por meio de um foco iluminado, pude notar que havia, abaixo de mim, uma longa estrada, mas não o sabia até então. Em toda a extensão da Rodovia, só havia um feixe de luz. Por um egoísmo qualquer (visto que isto significa falta de segurança e outras muitas coisas) considerei esta cena uma das mais belas que já vi. Concentrações pequenas de luz, muito espaçadas aparentemente sem comunicação alguma. Em anda parecido com o céu de SP, que é similar ao do Panamá e outros (nas mesmas condições).
Muy belo.
Cheguei à noite, 22:18hs, horário local. Demorei a encontrar minhas maletas e, quando saí, depois de muitas perguntas no portão de imigração, a família já me esperava.
Entrei em um carro azul, desses que aparece em todo filme que se trata de Cuba, un carrito muy bonito. Ah, não posso deixar de registrar um certo desconforto em todos os adjetivos (por mais agradáveis que o sejam) que remeto à qualquer coisa daqui.
Digo que acho os prédios, os carros, a tranquilidade e tudo o mais e já me considero uma "egoísta" de antemão. São casas velhas, sem descarga, sem infra-estrutura, mas eu as acho belíssimas. As ruas parecem que pararam no tempo, construções magníficas "preservadas" (sem o sentido técnico do termo). A casa onde estou é pequeniníssima, mas muito agradável. Tem corredores obscuros, janelas antigas, prédios que brasileiros desavisados chamariam de cortiço, mas tudo muito limpo (mesmo que não o pareça).
Não consigo entender uma palavra do que uns dizem ao passo que, com outros, entendo tudo e converso bastante. Estou muito sem graça... algumas pessoas não "gostam" (como se fosse uma questão de "gostar" ou "não", hunf) do Fidel.
Constranjo-me muitas vezes de dizer que o "atraso" deles... o tempo parado por aqui... é uma das coisas mais ricas que já vi. Mas assim é, que o saibam... e tudo se revira dentro de mim... mais um daqueles períodos de reviravolta total entre certo e errado, belo e feio e justo e injusto.

sábado, 7 de abril de 2007

Faz o seguinte: quando chegar em casa, derrube todos os meus livros, esparrame-se pela estante e diga que não sai de lá de jeito nenhum. Mas tem que ser firme e ter argumentos suficientes para eu não catar nenhuma livreta de poeta vagabundo, tacar na tua cabeça e te mandar sair dali. Tem que me oferecer cores, palavras, sabores, mundos, imundos e até cheiro de papel velho, não ligo. Quanto à interpretação, deixe por minha conta. Se você me convencer, expando o céu da minha semântica e te encontro até em notações fonéticas de dicionário chinês com explicação em russo. Faço de tuas estrelas minhas palavras, da tua existência meu pensamento, da tua caneta meu escudo, do teu corpo nosso sexo e das vírgulas, cúmplice. Esparramarei meu corpo sobre todas as folhas de papel branco e não organizarei as paixões em ordem alfabética, elas não terão nome. Colocarei teu lápis entre os seios e a tua frase predileta no umbigo. Terei olhos de Capitu, corpo de Iracema, rosto de Lolita e sexo de Tieta. Depois saio para buscar aquele peso de pedra que segura os livros para não caírem.
"NÓS NÃO VAMOS TRANSFORMAR A SOCIEDADE"
mais uma do capítulo deixa-tudo-como-está-porque-sempre-foi-assim e o segundo volume do, já batido, eu-tenho-uma-dúvida.

Esta semana fui a uma palestra sobre crítica de cinema e, depois de uma colocação sobre a irrelevância de uma certa discussão que tinha se levantado (sou chatonilda mesmo), depois de toda a confusão causada e depois de um certo "desconforto", a frase final foi dita, como sempre, pelo palestrante (no sentido de que ele se posicionou como "autoridade" no assunto): "nós não vamos transformar a sociedade". Por um ímpeto civilizatório ou repressivo social, não prolonguei a discussão, não me posicionei, enfim, calei-me (já tinha causado balbúrdia suficiente). "Nós", ele se referia ao cinema, "não vamos" significava não-cobrem-isto-da-sétima-arte, "transformar" não existia no imaginário do falante e "sociedade" era aquele círculo de meia dúzia de pessoas, brancas, magras, ricas e contentes.
Alguns dos elementos da discussão eram até que ponto um filme é revolucionário; se isto é mera ilusão esquerdista; que o cinema brasileiro, só porque é financiado pelo Estado, sente-se na obrigação de ter alguma roupagem - nem que seja vagabunda - de discussão social; que não se pode cobrar isto (sempre) do cinema e mais alguns outros temas, um pouco mais enlatados e batidos, discutidos em rodas deste tipo.
Quando fui embora, a tal "não-viabilidade" (ou não-querência?) de transformação ficou na minha cabeça como um dedinho de criança remelenta que fica pedindo pra comprar um doce. Que as coisas fiquem claras: eles entendiam transformação e revolução como a mesma coisa e debatiam neste nível; todos concordaram com o palestrante.
Que escancarar nossa situação social, desfiar as lutas de poder entre classes e todas estas coisas "politicamente corretas para um filme", até agora, não gerou nenhuma manifestação político-social significativa é fato. Que uma revolução da sociedade por meio, apenas, de filmes pode ser uma utopia, é válido. Mas será que isto não acontece porque, justamente, os filmes são feitos para as pessoas que querem mantê-la tal como está? A observação (uma das que eu mais gostei, diga-se de passagem) do próprio palestrante ajuda a responder. Ele afirma que, na maioria das obras cinematográficas de "denúncia social", há um personagem-Cicerone, geralmente, é o protagonista, que introduz e encaminha o cinespectador pela realidade perversa-bandida-injusta do país. Um bom indício para começar a se pensar sobre isto, não? Pois é, não foi o que aconteceu.
Bom, num plano mais concreto, a dúvida que mais me assolou foi a seguinte: supondo que a revolução (como eles entendem) não seja possível por meio dos filmes, a "reforma no modo de pensar" não se pode começar pelas películas? Digo, não só por elas, mas por meio das obras de arte como um todo? Aliás, a obra de arte não é uma manifestação peculiar do "modo de pensar"? Uma mudança (não sei encontrar a palavra exata) radical no cinema não pode catalisar as pessoas a pensarem de outra forma ou, simplesmente, a pensarem? Como Brecht, no teatro, revelar alguns mecanismos, enfim, despertar? Isto não seria um passo para a tal "transformação" da sociedade que, segundo o palestrante, não se deve cobrar do cinema porque ele não é capaz? Não tenho a pretensão que o cinema mude o mundo, tampouco quero impor uma homogeneização das produções com favela, bandido, pobre, classe média e todas as mazelas sociais estampadas, muito menos afirmo que os filmes de "transformação" tenham que seguir uma cartilha de temas. Que catso!! Oi? Ei! Estão todos dormindo com a tevê ligada.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

[Fragmento de anotações do pacote "ahn?"]
Cuba, 12 de março
Monumento a Che
Santa Clara, depois de visitarmos o monumento a Che e distanciarmos uns 300 metros dos guardas, sussurrando:
"Ana Clara, eu gostava dele assim como você. Sempre foi um ídolo para mim, um exemplo, além, é claro, de ser bonito... até um dia que eu descobri a verdade sobre ele"
"'Verdade sobre ele'? Uau! O quê?"
Sussurrando mais baixo ainda:
"Descobri que ele era comunista"
Pasmo.
Esta afirmação, com o grau de suspense "verdade sobre ele", deixou-me um pouco confusa. Ora essa, porque, simplesmente, para mim, isto era óbvio, o ponto de partida; ou, pelo menos, eu creía que era.
A moça só ousou falar isto em voz baixa e depois de andarmos um bom trecho além do monumento [na verdade, é um misto de monumento, museu e casa-de-túmulo]. As pessoas não podem expressar-se aqui e me pergunto que tipo de liberdade é esta. Pergunto da mesma forma que questiono a tal "liberdade" e/ou "democracia" que dizem existir em meu país.
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10 de março
"Ana Clara, preferia que você fosse mais burrinha e soubesse cozinhar. Seria minha nora perfeita"
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8 de março
Quando estávamos embarcando para Manzanillo, à noite, o rapaz que tinha reservado nossa passagem de manhã havia sido preso à tarde. [...]