terça-feira, 25 de julho de 2006

Ouvir Futebol e Jogar Teatro
Afogada nas minhas leituras rotineiras, descobri que à época do teatro elisabetano, meados dos séculos XVI e XVII, (sim, período shakesperiano; e não, não estou com aura romeu-julietanística) as pessoas costumavam “ouvir” o teatro. Como este gênero, apesar de sua intensa e alcantilada ascensão neste momento, ainda era incipiente, o foco estava muito mais nas palavras (sonetos, por exemplo) e no forte apelo à imaginação do público do que as superproduções visuais que conhecemos hoje. Isto era latente até na língua inglesa, as pessoas iam “listen” e não “watch” ou “see” o evento.
Na viagem de volta à Campinas, eu vim ouvindo e, por sua vez, “assistindo” a um jogo de futebol pelo rádio. Todo mundo já deve ter feito esta observação, mas reservo-me no direito ser redundante: quando um jogo é transmitido pelo rádio temos a impressão de que, a qualquer momento, o gol sairá pela garganta do narrador. É só a bola ultrapassar o meio de campo no pé do adversário e zás: lá está você roendo as unhas. Pode ser Ranchinho-fundo contra Buraquinho-do-nada, a energia do locutor aliada à técnica fantástica de nos fazer acreditar que é tudo ou nada – o tempo inteiro – mantém-nos em constante estado de tensão e alerta. Portanto, até Fulano das Quintas e Mané das Tantas tornam-se verdadeiros craques de bola e o são.
Afinal, você não vê se o uniforme é da Nike, Adidas ou Reebok; se a chuteira é vermelha com cadarço de ouro, ou prata com contador de passos ultra high-tech; tampouco se ele tem sorriso colgate, corpo escultural ou fez propaganda de banco; pois isto não importa. O que você tem é a narração e o espetáculo acontecendo, tal como nos teatros elisabetanos. O público cultural ainda tinha o prazer de estar de corpo presente, mas o cerne da trama estava na concatenação das palavras e na força de imaginação da platéia. A “limitação” visual não diminuiu nem um pouco (pelo contrário) a potencialidade e a qualidade das criações e apreciações teatrais.
Diderot, na “Carta sobre os cegos para uso dos que vêem”, discorre sobre a capacidade dos cegos em conceber na imaginação objetos geométricos como cubo, pirâmide, sólidos de revolução e fazer raciocínios lógico-matemáticos tão complexos quanto a própria perplexidade dos que vêem em entender isto. Portanto, a elaboração do raciocínio está muito mais na capacidade de articular pensamentos do que de, propriamente, termos uma representação visual de algum fenômeno para depois “pensá-lo”.
O público inglês do século XVII não precisava de uma cena hollywoodiana para apreender as críticas que os autores e atores apresentavam. Não podemos descartar, é claro, que, ao longo do tempo, as concessões do público foram sendo feitas de tal forma que, atualmente, não é preciso mais avisá-lo que três soldados representam um exército inteiro.
Podem dizer que será exagero, pseudopatriotismo, adoção ao marketing esportivo, alienação de Copa do Mundo, mas, digam o que quiserem, eu vou dizer: esqueceram de avisar os nossos jogadores que, de certa forma, eles representavam o Brasil, o povo brasileiro. Podem dizer também que o conceito de nação, como qualquer outro, é mera construção histórico-teórica; que neste país não há civilização suficiente para conceber o que é, de fato, isto; que a noção de “povo brasileiro” é ambígua, imprecisa e ideológica; concordarei com tudo. Mas prossigo afirmando: os jogadores contaram tanto com a nossa concessão que esqueceram de... jogar – no caso dos atores, seria o mesmo que deixar de encenar. Abriram as cortinas e tcham tcham tcham: silêncio. Todo mundo esperou, esperou. Nada. Deu até sono de tanto esperar o “espetáculo mágico”. As luzes piscavam, o tambor tocava, os fogos ascendiam, o povo gritava e... imobilização total. Por fim, vieram as semi-finais e cataplóft: desceram os panos e apagaram as luzes.
Bom, estando perdida entre as coxias da Copa com as cortinas mais do que cerradas (só se ouve Zidane e o Italiano se estapeando nos bastidores), fui interrompida por um grito do narrador: era um pênalti a favor da Ponte Preta defendido por Rogério Ceni cuja validade foi anulada, pois, afirmava o juiz, o goleiro havia se mexido além do limite...

Hasta la vista, beibe!

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