quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Guerreiros fazem zigue-zigue-zá

Não sou escrava de Jó, nem jogava o Caxangá, mas tenho uma séria dificuldade em decidir o que tirar, o que pôr e o que deixar ficar. No processo de multiplicação, abstenção, aquisição, distribuição e subtração dos problemas e loucuras diários, sempre resta alguma peça no lugar errado – como aquela mão desajeitada que não sabe acompanhar o jogo e a música ao mesmo tempo e acaba enrolando todas as peças da brincadeira.
Há certos dias – poucos, mas há –, em que as loucuras, na correria insana da rotina, acabam tomando seu rumo e combinando-se, umas às outras, perfeitamente. Uma sinfonia tão bem regida que elas passam despercebidas. Por incrível que pareça, os problemas não se atrapalham em meio ao furor cotidiano e, ao fim do dia, eu me olho no espelho, dou uma piscadinha, desenho um “Z” no vapor acumulado e esboço um singelo sorriso.
Porém, como não dá para ensinar todos os meus neurônios e intuições a jogarem ao mesmo tempo, com a mesma rapidez e habilidade, as peças acabam embaralhando-se todas mais freqüentemente. Para impedir um colapso geral do jogo, escondo algumas loucuras; cochicho uma correção à razão; deixo algum problema estagnado para a próxima rodada; dou um jeito. Afinal, nem sempre, como na brincadeira tradicional, eu tenho uma peça por passagem. A vida é um pouquinho mais complexa.
O imbróglio se dá mesmo no final: depois de todas as artimanhas para articular e arranjar as loucuras e problemas e combiná-los com a música, quando tudo parece estar definido para o fim do jogo, os malfadados guerreiros não me deixam decidir onde colocar as peças. É um tal de peça que vai, mas volta; parece que fica, mas vai; loucura indo, razão voltando, problema multiplicando e tudo vira uma imensa lambança.
Tem guerreiro fazendo zigue-zigue-zá na minha cabeça.

terça-feira, 29 de agosto de 2006

Perguntas não-aceitas
Alguns chamam de instinto jornalístico, outros de rebeldia fajuta; para uns a culpa é do signo, para outros da minha formação; muitos atribuem a um poder metafísico e transcedental chamado "jeito de ser", outros a uma impertinência e burrice próprias da juventude...

Admito: nem sempre -- ou quase nunca -- meus questionamentos são socialmente aceitáveis (ou convenientes, tudo é uma questão de "dar nomes"). Não que eu invada a privacidade das pessoas e ultrapasse o limite da "propriedade privada de temas" a serem discutidos na mesa de um bar, por exemplo; não que eu não entenda as piadas, pelo contrário, geralmente, dou continuidade (sem muito sucesso, mas isto vale outros motivos para rir); não que as perguntas sejam tão óbvias, a ponto de levar meus interlocutores a questionarem se eu consigo bater palmas sozinha. O que acontece, então, que eu sou mestre na arte de desconcertar as pessoas? Longe de ser um mérito conseguir silenciar uma conversa e ser bombardeada por olhares inquisitores, eu só observo (muito, eis o problema), escuto e questiono.
Um avanço. Afinal, antes, eu perguntava e falava demais. Agora, só pergunto. Lógico, um recuo estratégico, pois na arte de "falar demais" eu era sempre contra-atacada quando havia alguma autoridade presente. Autoridades não gostam de gente que fala. E, quando se trata dos "donos da verdade", não adianta discutir.
Como há em mim um certo instinto -- instinto mesmo, é quase incontrolável -- insubmisso, tive que sair por alguma via e adotei a pergunta. Além de evitar a enxurrada de críticas aos pressupostos do meu discurso oral, ao colocar-me na condição de aprendiz, quase de imbecil mesmo, permito-me fazer os tais questionamentos. No entanto, até as perguntas têm o seu caráter ignóbil (por mais cara de inocente que eu tente fazer, ou por mais singela que seja a dúvida mesmo). E dá-lhe indiscrições... minhas, claro.
Admito outra coisa: eu me divirto demasiadamente com tudo isto.

segunda-feira, 28 de agosto de 2006

QUANDO AS PESSOAS DIZEM O QUE EU QUERO DIZER...
Ana Clara

As pessoas não pensam as coisas, elas pensam nos rótulos
Mário de Andrade

A forma predominante de dominação ideológica não é mais o ocultamento dos fatos, um estratagema bastante primitivo, usado pelas ditaduras. Hoje, a dominação se faz muito mais pela capacidade de nomear. Mário de Andrade dizia: "As pessoas não pensam as coisas, elas pensam nos rótulos". Tinha razão. Boa parte do jornalismo econômico contemporâneo, por exemplo, tornou-se uma grosseira arte de rotular.
À lei que define que os recursos públicos devem ser prioritariamente usados para pagar juros ao sistema financeiro, em detrimento de todos os demais gastos do Estado, rotula-se "lei de responsabilidade fiscal". à prática de cortar gastos essenciais, para sustentar esses mesmos pagamentos, rotula-se "disciplina" ou "austeridade", necessárias para formar um 'superávit! metafísico (denominado, espertamente, "superávit primário"). Ao desmonte dos mecanismos de defesa de uma economia periférica e dfrágil rotula-se "abertura". Aos efeitos do desvio de finalidade das contribuições sociais - recoluidas pelo Estado, conforme a Constituição, para financiar os sistema de seguridade social - rotula-se "déficit da Previdência'.
Os meios de comunicação difundem esses chavões e, pela repetição, os incorporam à linguagem comum. Feito isso, não há mais debate possível. Quem pode ser contra "responsabilidade",
"abertura", "superávit", coisas evidentemente tão boas? Quem se habilita a defender, a sério, "irresponsabilidade", "indisciplina", "gastança", "fechamento" e "déficit"?
Em plena vigência de um regime político que garante liberdade de imprensa, paradoxalmente, quase ninguém tem acesso aos conteúdos das questóes. Tudo fica paralisado nos rótulos, usados para bloquear sistematicamente o pensamento.
César Benjamin, Revista Caros Amigos, dezembro 2005.

domingo, 27 de agosto de 2006

Conformação alfabetizada

Uma mulher -- estereótipo da empregada doméstica-- começa a testemunhar sobre os inumeráveis benefícios de aprender a ler e a escrever: "Agora, eu posso ler as receitas da minha patroa e fazer tudo que ela gosta. Ninguém precisa mais me ajudar..."
Um homem, caracterizado de porteiro de edifício de luxo, segue na mesma linha: "Agora, posso ler as correspondências e entregá-las exatamente ao seu dono, sem problemas. Até sei anotar recado!"
E assim termina as propagandas da campanha de alfabetização solidária. Ninguém vai se alfabetizar para mudar de posição, para voltar aos estudos, para entrar numa faculdade, para aperfeiçoar o raciocínio, nada neste sentido.
O aprendizado é para servir melhor os patrões, afinal, "vocês, analfa, não conseguem nem anotar recado, nem fazer um bolo sozinhos! Bando de incompetentes. Mas nós, pessoas muito legais, oferecemos-te a oportunidade de serem empregados mais eficientes, pedindo, pela televisão, que os teus patrões ajudem a nossa campanha". Uma espécie de manutenção qualificada do status-quo.
É mole?
Uma campanha, por uma causa tão boa, enviesada desta forma, é revoltante.
Se a Cássia Eller é uma garotinha, eu sou o quê?

sexta-feira, 25 de agosto de 2006

É mais fácil cultuar os mortos do que os vivos
mais fácil viver de sombras que de sóis
é mais fácil mimeografar o passado
que imprimir o futuro
Não quero ser triste
Como o poeta que envelhece
lendo Maiakóvski na loja de conveniência
Não quero ser alegre
como o cão que sai a passear com o seu dono
sob o sol de domingo
Nem quero ser estanque
como quem constróis estradas e não anda
Quero no escuro
Como um cego, tatear as estrelas distraídas
amoras silvestres no passeio público
amores secretos debaixo dos guarda-chuvas
tempestades que não param
pára-raios quem não tem
...
Zeca Baleiro

quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Estudando com o inimigo

"ACESSO RESTRITO SOMENTE A FUNCIONÁRIOS"
Aviso pregado numa porta, no corredor do prédio do IFCH, na Unicamp.

Nota: o acesso é exclusivo aos funcionários.


Pego o ônibus, abro meu livro, ligo meu fone, aprecio a paisagem, pago a passagem, desço do coletivo, subo o primeiro lance de escada e, blam, deparo-me com este aviso. Isto acontece há um mês, pelo menos, três vezes por semana e incomoda-me profundamente. Não, claro, somente pela chatice adquirida de corrigir pleonasmos, regências, palavras inadequadas etc, mas pela outra chatice de encontrar, como diz o provérbio, "pêlo em ovo" ou "chifre em cabeça de cavalo".
Como boa joselita, poderia pegar minha caneta, com toda fúria que algum membro do IEL tem passando por ali, aponto para o local do crime, os olhos cheio de sangue e zás! Risc risc risc risc retiro um dos termos que distorcem o sentido original da oração.
Depois de imaginar esta cena com um risinho sarcástico, chego no segundo lance de escada e já estou com os pensamentos em outro lugar.
Atualmente, muitas portas estão fechadas somente para funcionários (no sentido mais amplo). Donos de banco, empresas, multinacionais têm acesso a várias coisas que a maioria das pessoas não têm. E não falo apenas de poder de consumo para obter uma televisão 49 polegadas, tela plana, mas de capital cultural, ensino, aprendizado mesmo. É um tal de cerrar portas para o conhecimento que, muitas vezes, me assusta. E o movimento é tão intenso que até quem possui "capitais" para adquiri-lo, não o faz e se perde em coisas banais como estas tranqueiras publicitárias que se vendem por aí.
Calma, não vou me alongar nesta discussão... afinal, já estou em frente à sala e tenho que entrar para a aula.
Até a próxima ;)

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Juventude


Tenho medo da minha velhice. Não estrito senso, lato mesmo. Não me refiro à mera passagem dos anos refletida em meu físico ou em qualquer outra pessoa, mas, sim, a vetustez da minha geração. Não é preciso muito para entender o abismo mental em que estamos inseridos.
Há quem diga, lógico, que o quadro catastrófico já estava montado há mais de dois séculos; outros que foi no século passado; outros desde que alguém acreditou na idéia de propriedade; outros desde que o homem se entende por ser social; outros juram que foi o golpe de 64, maldito golpe, se não fosse ele...; para além das conjecturas sobre o ponto de virada (se é que existia um mundo-maravilhoso anterior sobre o qual os mais velhos tanto falam) uma coisa é certa: agora, a versão é intensamente piorada. E, se isto ocorre na juventude, o que esperar da velhice da minha geração?
Vejamos um exemplo: Fernando Henrique Cardoso. Como intelectual, é indiscutível. Na juventude, diz sua bibliografia, lutou pelo avanço dos direitos políticos, sociais, participou do MDB, estudou, foi ativo na política (entendida como sistema de pressão para fazer-se ouvir na classe dominante, no caso, a ditadura). Depois que envelheceu, atingiu o poder e pediu, solenemente, para todos esquecerem o que havia escrito. A despeito da sua própria história, pediu: esqueçam, simplesmente, “esqueçam o retorno”. Não diria c’est la vie, mas c’est Brasil. O problema aqui não é o político que ele se tornou, o presidente que foi, nem o pedido que fez, mas a posição que ele tomou. Se, com uma história de luta, participação, inteligência que Cardoso teve (e tem) sua atitude, depois de “amadurecido”, foi abandonar a memória e viver o presente, o que dizer da senilidade da nossa juventude? Nossa geração já nasce sem história. Não vai ter nem o quê pedir para esquecer, não fez nada mesmo.
Claro, há exceções. Posso citar diversos “senhores” como o pai da minha amiga (já citado neste blog) que passou pela ditadura como o melhor dos mundos; lê Veja; é refém do cartão de crédito, do último celular high-tech, do carro nova geração; acha todos os “Fernandos” o máximo: Fernando Henrique, Fernando Collor, Fernandinho Beira-Mar e, claro, que todas as desgraças do país são culpa do Lula. Ou será que este tipo já tinha virado regra? De todo modo, seremos a versão ultra-piorada de uma versão já e infelizmente piorada.
Deixemos os exemplos de lado.
Às vezes, eu costumava dizer que a geração de 84 foi a última que teve infância. Não errava, só faltou aprofundar mais e incluir quesitos mais relevantes que, por sua vez, definharam vertiginosamente da minha geração em diante. Sim, como sempre, há aqueles que são exceções mas, a partir dos oitenta-e-quatrianos (um pouco mais ou um pouco menos), começaram a tornar-se regra.
Minha preocupação intensifica-se quando leio Ítalo Calvino (aliás, foi a partir deste trecho abaixo que me inspirei para este post).
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Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais.

De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente.

Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmo (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo.
Portanto usar o verbo ler ou verbo reler não tem muita importância.
“Por que ler os clássicos”, Ítalo Calvino

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Lembro-me do axioma da juventude de décadas atrás “não confio em ninguém com mais de trinta anos”. Um ato corajoso, expressão de autonomia, de rompimento com valores tradicionais e todo um conjunto de idéias pululantes do período. E daí? Eu confio em gente com mais de duzentos anos! Aliás, eu desconfio mesmo é de todo mundo, principalmente, de quem tem a minha idade ou inveja-a.

sábado, 19 de agosto de 2006

Paradoxo(s)

Feliz com a instalação da internet banda larga e triste pelo meu computador destruído por um vírus. Pensando bem, não é tão paradoxo assim... o resultado é pior do que a situação anterior.
Agora, nem escrever em casa posso mais. Portanto, caros amigos, a produção intelectual (se é que podemos chamar assim) deste blog está nas mãos dos técnicos. Ainda bem que eles existem.

terça-feira, 15 de agosto de 2006

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa

__Exercício__

Existe uma técnica por meio da qual é possível perceber com quantas mãos tocam-se uma música exclusivamente de piano. Na verdade, eu estou elevando a categoria, não é uma técnica com toda rigorosidade que esta palavra pode requerer, mas um afinamento auditivo peculiar, um dom que não necessariamente é restrito a músicos, ou a quem já fez aula de música. De qualquer forma, quem já freqüentou uma escola de piano, como é o meu caso, adquire esta habilidade.
Como todos sabem – se não, passam a saber agora – eu perdi uma das quartas partes do nível de audição na infância. Portanto, possuo uma certa relação visual com o som; desenvolvi, digamos assim, um sentido meio sinestésico, por meio do qual não sei diferenciar os limites de uso da vista em relação à audição considerados normais numa pessoa saudável. Sem dramas, é praticamente imperceptível e não há problema algum.
Há uma música, que adoro muito, cuja composição é só piano (“Comptine d'un autre été L'après Midi”, de Yan Tiersen). É incrível como consigo “ver” a movimentação das mãos e, principalmente, quantas trabalham na canção, no caso, quatro. Como se descobrisse a “verdade” por detrás da obra, ouço-a diversas vezes e sinto um prazer em parte egoísta, em outra de superação. Egoísta por achar que só a alguns é delegado o direito de ter esta “visão”, fato que perpassa, de certo modo, pelo malfadado sentimento de superioridade cujo resultado, se não bem administrado, é abominável. Superação por, ao ter em meu (in)consciente esta deficiência, poder “sentir” a música em sua “totalidade” – visto que, em relação aos normais, minha percepção estará sempre com o botão de volume algumas voltinhas para baixo.
Estive pensando, se elevarmos este quadro para uma outra escala, mais abrangente, teremos um cenário interessante.

Sem romantismos, nem melodramas, consideremos a vida como a execução de uma música. Execução nos dois sentidos: de “levar a efeito” e “cumprimento de uma sentença”, no caso, a morte. Afinal, “viver é morrer”. Alguns tocam a vida como uma valsinha chata e repetitiva; outros como uma verdadeira sinfonia alternando picos de tristeza, notas graves; silêncio absoluto longo e curto; alegria, notas intrépidas; sonatinas, loucura, sem, no entanto, perder a harmonia total do caráter mesmo que, aos olhares abstratos, estas alternâncias determinem uma essência corrosiva (mera falácia); outros, ainda, são completamente desafinados. E tal desafinação, muitas vezes, cria uma saga irreverente, uma harmonia peculiar que só é descoberta quando se faz o silêncio; e assim por diante. Para além destas comparações um tanto óbvias e batidas, está a própria construção da moral e da percepção do tempo por meio da música cuja relação Mann faz perfeitamente na fala de Ludovico Settembrini:


“...[Há] um fator incontestavelmente moral na natureza da música; a saber, que ela mede o curso do tempo de uma forma especial e cheia de vida, e assim lhe empresta vigilância, espírito e preciosidade. A música desperta o tempo; desperta a nós, para tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta... e portanto é moral. A arte é moral na medida em que desperta. Mas que sucede, quando ela faz o contrário? Quando entorpece, adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe perfeitamente agir como ópio. [...] O ópio é uma obra do Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil. [...] Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita” A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

Então, temos moral, tempo e vida. Ora essa, no que diz respeito ao espírito, temos os elementos necessários para uma reflexão acerca de qualquer coisa, em qualquer ordem. Veja, até para se chegar à amoralidade, é necessário tempo e vida. Neste caso específico, o item moral pode ser “retirado”. Para todos os outros, ou ele é atacado, ou é defendido, ou é relativizado, e, de uma forma ou de outra, é tratado.
Agora, suponhamos que é possível para alguém visualizar quais são as “mãos” e de que forma elas atuam na composição daqueles elementos constitutivos de sua própria personalidade – como “essência” subjetiva – e existência como ser físico. Parece-me que Nietzsche responde quem é o alguém capaz de enxergar esta movimentação: os espíritos livres.


"Em geral, todo progresso tem que ser precedido de um debilitamento parcial. As naturezas mais fortes conservam o tipo, as mais fracas ajudam a desenvolvê-lo. – Algo semelhante acontece no indivíduo; raramente uma degeneração, uma mutilação ou mesmo um vício, em suma, uma perda física ou moral, não tem por outro lado uma vantagem. O homem doentio, por exemplo, numa estirpe guerreira e inquieta, poderá ter mais ocasião de estar só e assim se tornar mais tranqüilo e sábio, o caolho enxergará mais agudamente, o cego olhará para o interior mais profundamente, e em todo caso ouvirá com mais apuro” Enobrecimento pela degeneração, em Humano, demasiado humano,de Friedrich Nietzsche


Por meio de uma limitação física ou moral, o indivíduo pode progredir no campo do espírito e, desta forma, desenvolver a capacidade de visualizar os movimentos que entoam nas esferas da sua formação. Veja, o espírito livre, dependendo do nível de argúcia, é capaz de identificar, além do modo, QUAIS são as notas tocadas – da tradição, da razão, da emoção, do pudor, etc. Isto, diz Nietzsche, gera um ser superior. Superior no sentido de que adquiriu esta habilidade de “ver” a maneira pela qual a música é tocada. Este fato, por sua vez, ganha ares de “descoberta da ‘verdade’”, sem, no entanto, sê-la absolutamente. Contudo, o espírito livre possui esta debilidade física e/ou moral, logo, esta “visão aguçada” impute-lhe o prazer da superação de suas próprias limitações tanto objetivas quanto subjetivas, tanto inconsciente quanto conscientemente.
Apesar da astúcia e do refinamento destes espíritos, ainda falta muito para descobrir QUEM está por detrás de toda esta melodia, por enquanto, os créditos ficam para a Verdade, outro Pacu da sociedade.

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Quem pagará o enterro e as flores, se eu morrer de amores?

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Sobre a rosa do meu vaso

Na cozinha de casa há dois botões de rosa numa garrafa d’água. Quando cheguei, olhei bem para eles. Faz exatamente dois dias que as flores estão sobre a pia, portanto já perderam aquele vigor intenso, típico das rosas vermelhas; elas já estão prostradas e no início do processo de murchidão. O tempo também passa para e pelas rosas.
Abri o armário, peguei uma bolacha e, em meio àquele estado letárgico de saciação quase infantil, passei a fitá-las. Uma ponta de alegria invadiu-me a alma quando notei que uma pétala afastara-se sutilmente de um dos botões. No entanto, o outro, parece-me, desistiu de caminhar pela saga do desabrochar e encontrava-se literalmente de costas para mim, sisudo, carrancudo e introspectivo. Com este não havia papo, decidiu-se virar e esperar os dias restantes para o destino nefasto de todos os seres vivos.
Com meia bolacha na mão, aproximei-me mais e observei, através de meus olhos de lince hipermetrope, a astúcia da pétala. Não deveria tê-lo feito. Num súbito, incorreu-me a possibilidade de, ao ver o estado moribundo da rosa, ser um fator secundário: num determinado momento, alguém passou por ali, esbarrou a mão e ocasionou o deslocamento daquele pedaço da corola do centro condensado; portanto, a cena que acabara de me encantar não teria um centésimo do lirismo que lhe atribuiria se continuasse persuadida pela idéia de “esforço sobrenatural” para o abrolho. Afastei-me um pouco para ter certeza de que aquilo não era resultado de uma aproximação exagerada. De fato: em relação ao botão carrancudo, a rosa lírica avançou de forma significativa. O corolífero, todo aberto, aguardava servilmente o pouso das pétalas em seus braços. Estas, por sua vez, já tinham perdido o caráter condensado de botão e a flor iniciara a saída de seu estado casuloso, mesmo com o aspecto cansado, pétalas enrugadas e folhas amareladas.

Será que o botão carrancudo sabia de seu destino e desistira de tudo? Será que a rosa lírica era uma alienada e perdia seu tempo? Será que a lírica sabia, mas era irônica? Será que o sisudo não sabia e, por isso, não se preocupava em desabrochar logo? Será que o sisudo inveja o abrolhar da regalada? Ou acha-o desperdício de energia? Será que a regalada tem dó do carrancudo? Ou abriu-se para atacá-lo? Eles se “vêem” ou são fatores isolados? Por que uma abriu, o outro não? Por que o tempo passou tão diferente para os dois? Por que...? Será...?

Terminei a bolacha e, sem desviar os olhos, peguei um copo d’água. O líquido tonificava meu corpo do adoçamento, enquanto pus-me novamente a pensar que ambos, em pouco tempo, estariam ressequidos, amarronzados e mortos. E dei a questão por encerrada com o último gole.

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Deram-me lentes e vi um mundo doente

7:45hs
"Aaaaaaahhh! Socorro! Minha bolsa! Aaaaa! Levaram minha bolsa. Filho da puta! Olha lá, ele está correndo! Minha bolsa... pega!!! [choro]"
Acordei ao som destes gritos, uma mulher foi assaltada na porta do prédio em frente. Eu e todos os moradores deste e do meu edifício saíram às suas respectivas janelas para verificar o que ocorria. Tive a rara oportunidade de conhecer meus vizinhos:
Uma família -- pai, mãe e três crianças assistiam à cena do assalto amaçarocados na janela, como se disputassem um lugar no sofá para assistir à novela das oito; um ancião de expressões profundas, sulcos marcantes no rosto, mantinha os cansados olhos baixos e parecia ter a certeza de que aquilo, mais dia ou menos dia, ia acontecer. Quando nossos olhares encontraram-se, eu li em sua face um convicto "não disse?"; um jovem, preparando-se para sair ao trabalho, arrumava a gravata, impassível. Estava ali por acaso, sequer notara o que acabava de acontecer; dois recém-casados (vi-os chegar com o carro todo enfeitado, pintado e latinhas penduradas na traseira) debatiam fervorosa e preocupadamente o fato. O rapaz segurava um telefone na mão e descrevia o acontecimento para, ao que parecia ser, a polícia, enquanto a garota ia em seu encalço também desconsolada; uma senhora, rindo discreta e desdenhosamente, chamou-me a atenção, pois eu estava certa de que a encontraria, pouco tempo depois, entre as portarias dos prédios (cuja distância é uma rua bem estreita) contando todos os pormenores a qualquer morador que passasse por ali.
E assim incluo mais pessoas comuns no meu armário de conhecidos e, claro, alguns olhavam, de alguma forma, pra mim, afinal eu encontrava-me numa mistura assustadora: espanto com os gritos, rosto amassado pelo travesseiro, espasmo pelo cenário total da vizinhança e incômodo, muito incômodo, quase um tormento pelo diagnóstico que tal fato é possível, a partir somente desta pontícula do Iceberg.

10:30hs
Parei numa esquina e esperava o semáforo de pedestre abrir. De repente, Blam! Péim! Plec! Pow! Pow! Trec! Péim! Plec! Póft!, uma mulher destruía um orelhão ao meu lado. Ela agarrou o fone com todas as forças possíveis e batia violentamente no aparelho, puxou o fio e foi detonando tudo, sem menear, nem pestanejar e sem receio de quem estivesse olhando. Como eu era a pessoa mais próxima, ela virou-se pra mim e disse: "Só não quero que me façam de palhaça! Esta merda de Telefonica!! Fui lá reclamar que o orelhão engoliu meu cartão, veja, o orelhão que tem em frente de casa e eles, além de não me pagarem pelo dinheiro perdido, disseram que não existia telefone público no meu endereço!! É dinheiro, moça! Eu trabalho e estes cretinos ficam rindo da minha cara e esta porcaria de Procon não serve pra nada! Eu não gosto de destruir as coisas, nem é da minha índole. Mas palhaça eu não sou...!!".
Eu ouvia e concordava, quase disse a ela que daria uma ajuda com uns pontapés, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ela acrescentou: "e que venha a polícia aqui! Eu quero que eles venham, cadê? Eles só prendem os pobre-coitados inocentes que têm medo deles. O Marcola, o PCC, o Beira-Mar tudo manda eles irem se fuder (sic) e estão aí... soltos ou com cela de luxo. Eu destruo mesmo... quero ver alguém aparecer...". O sinal abriu, perguntei à mulher se não queria atravessar comigo, ela agradeceu, mas negou minha oferta, disse-me que tinha um serviço a terminar. Desejei-lhe boa sorte [sem ironia] e continuei meu caminho...
Ai que inveja... e vontade.

Bom, assim começou o dia de hoje, depois de ter ido dormir com as palavras de Fidel na cabeça (pendurei uma matéria da Folha e outra do Estado na porta do meu quarto). Esta história de enxergar melhor com meus novos óculos está trazendo resultados... preciso articular-me, agora, para conseguir uns braços e umas pernas de ferro.
O dia ainda não acabou, falta presenciar uma agência bancária explodindo, ou então a ação de alguma versão brasileira de Edukators... mas sem perder a ternura jamais.

domingo, 6 de agosto de 2006

Fôlego Renovado

Com o coração em ordem, claro, nada que um final de semana com muito trabalho chato e estressante não resolva, estou de volta.
Vou seguir outra linha nesta parafernália bloguística, e tentar não fazer "posts" em casa, porque eu penso muito sobre eles e... bom... estou afim de treinar a agilidade.
Como todos sabem, não tenho internet em casa, portanto luto incessantemente com o reloginho das lan-houses para escrever todo o montante de idéias que circulam em minha cabeça. Como diria um amigo chato que encontrei e, infelizmente, tive que almoçar com ele (foi inevitável): aqui na lan "eu não peço cardápio, só digo 'o de sempre'". Pés-si-mo, não é?! Também achei, mas a metáfora foi boa.
Para contribuir com meu fôlego sentimental e físico renovado, adquiri um "visual": voltei a usar óculos. O objeto é tão estereotipado que, batata, não passo por ninguém sem o malfadado comentário: "nossa, ficou com mais cara de intelectual". Credo! Nestas horas, é melhor não dizer nada. Quem dera a solução tivesse nos óculos... se bem que, atualmente, muita gente vive na cegueira, mas isto é outra discussão. De fato, eu estava precisando das lentes e a narração da minha consulta merece um capítulo à parte.

Econo-mediquês
Depois de quarenta minutos, com os olhos esbugalhados de tanto colírio, o doutor -- provavelmente de saco cheio de tanto eu confundir "X com Y e V", "N com H", entre outros -- declarou meu diagnóstico: "Seu grau aumentou bastante: 1,75 nos dois olhos. Mas eu vou te dar um desconto". Nesta hora, imaginei um convênio com uma ótica, um óculos mais em conta, um bônus na mensalidade do plano de saúde, quelque chose. Ele continua: "vou te receitar 1,25 no direito e um no esquerdo, porque você rejeitou mais de 50% do grau anterior sem o uso do colírio. Além disto, o custo de usar um grau com este índice e blá blá blá".
Eu me senti num mercado livre de graus, visões, hipermetropias e astigmatismos. Tudo assim, com desconto, custo, eficiência, índices. Só faltou ele falar que os títulos da dívida hipermétrope estavam em baixa por conta de um desvio na variação cambial astigmática!
Pedi para ele refazer algumas colocações porque daquele econo-mediquês eu não estava entendendo nada.
Saí com a solução para a vista, mas com um problema de comunicação.
Vou a um fonoaudiólogo, ou a um otorrinolaringologista, quem sabe eles não resolvem?

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

"Socorro, aqui tem um coração!"