quarta-feira, 20 de dezembro de 2006
segunda-feira, 18 de dezembro de 2006
A minha angústia de escrever é escolher. Temos que escolher o cenário, o estilo, o tamanho dos parágrafos, a personalidade das personagens, delimitar o tema, as descrições, a relevância, as atitudes, os gestos, os movimentos, as metáforas, as figuras de linguagem, a vírgula, o ponto, o ponto e vírgula, exclamação, travessão, tristeza, alegria, morte, vida, nem sempre consciente. Tudo isto tem que se articular e isto angustia-me. Sempre pergunto a mim mesma: por que tal personagem será assim? Por que ela vai falar isto? Por que descrever tão minuciosamente esta porta, este objeto, esta paisagem é relevante? Por que descartei tal descrição? Por que eu não fiz referência, por exemplo, ao tipo de chão que tal personagem passa na cena mais importante do texto? Por que vou dar "voz" a alguém neste trecho? Por que sou onisciente (ou não)? E se eu quiser que em cima da mesa da protagonista tenha uma tesoura? Ou um lápis? Ou nada? Por que não a coadjuvante? Por que eu não quis escrever isto e quis escrever aquilo?
É por essas e outras que escrever, para mim, é uma aventura. É certo que isto causa um atraso imenso, nunca consegui escrever, por exemplo, uma história grande o suficiente ou como eu gostaria. Sempre esbarro nestas coisas, fico exercitando minha liberdade "criativa" (não no sentido de auto-elogio, mas do poder que todo ser humano tem de inventar uma história banal, ou seja, de fazer escolhas) tirando e pondo coisas, diálogos, interferindo em destinos, construindo mundos, reinos, cidades, mares, planetas, destruindo-os, reconstruindo-os. Crio personagens, decido idade, tamanho, cor dos olhos, comportamento, índole (ou falta de), formação. Ou seja, tudo. É mais que o poder divino praticamente, pois eu - como qualquer escritor - decido exatamente tudo. Bom, devo ter acabado de cometer uma heresia sem tamanho, a não ser que Deus tenha controle sobre o comportamento, formação, atitudes e pensamento de todos os seres daqui debaixo (até sobre os que são contra Ele), retiro o que disse.
Certa vez sentei para escrever uma história. O texto até que flui, as idéias até que vêm, mas eu não resisto em inserir ou retirar um objeto, em trocar uma fala, em desvirtuar completamente o destino já estabelecido, remexo, reviro, não gosto, tiro e, enfim, a não ser que tenha um objetivo pragmático (artigo de jornal, blog, trabalho de escola etc) posso sair de uma trama no século VII a.C a um romance policial no século XIX. Não que eu tenha capacidade para fazer nem uma coisa, nem outra, mas fico mastigando este monte de variáveis e isto me angustia profundamente. Por que falar de uma coisa, se eu posso falar outra?
Angustiante, mas desafiador. Há uma seqüência de cenas no filme "Buenos Aires 100Km" que me é particularmente perfeita: o menino-protagonista está a escrever um conto e o diretor mostra, na tela, a história que o menino conta enquanto este redige. Para cada decisão acerca do "romance" do menino, a história muda. Ele escreve (não me lembro exatamente): "Era uma vez um monstro que chegou à pé numa casa..." e aparece a cena do monstro. Ouve-se o barulho da borracha no caderno, o menino fala: "Não! Um monstro que chegou de bicicleta..." a cena volta e aparece a mesma coisa, mas o monstro de bicicleta. A seqüência é feita várias vezes, em vários trechos do conto e é divertida, um tanto engraçada (descrever perde a graça). Enfim, é isto que acontece. Assistam, recomendo.
Voltando, num segundo nível, quando a gente - no meu caso, muito sofridamente - consegue fazer a trama fluir, sem o desespero incontrolável de tomar o poder da caneta e mudar tudo, as personagens, a trama e tudo mais aquilo que você escolheu começam a tomar vida própria. Outra angústia. Por mais que você queira dar um destino nefasto ou cristão, algo controla os diálogos, as descrições etc etc... como se o seu subconsciente (ou alguma instância desconhecida) disesse: "sai daí, agora é a minha vez". Já matei personagem sem querer, já fiz a minha criação tomar atitudes inpensadas, incalculadas, já suicidei minha melhor personagem, já fiz o impiedoso ter perdão, o sertão virar mar e o mar virar sertão; já me prendi em quartos escuros, já atravessei o oceano, sem querer (por isto acho que cometi uma heresia lá em cima). E você lê, lê, lê, quer mudar e não muda. Que saco. E brigo: por que você fez isto, personagem estúpida? você é louca? Para onde você vai? Não fala isto! Não faça isto! Não faça aquilo! Pronto, já foi, já era. Eu não sou mais livre. O tal peso, as tais camadas, o tal desconhecido e todas estas variáveis, elas, sim, me escolheram.
O que eu faço? Se eu pudesse, como o Criador veio para a terra, enviar-me-ia para dentro de um monte de páginas, tornar-me-ia, então, personagem de mim mesma, e, portanto, tiraria da mão daquele cretino filho-da-mãe que eu criei a arma com a qual ele ia se matar.
Como não dá, destruo e queimo tudo, ou melhor, deleto e arranco até da lixeira. Nem como lixo servem minhas histórias.
sexta-feira, 15 de dezembro de 2006
quinta-feira, 14 de dezembro de 2006
Coloquei-me assim porque estou de mudança. E, mudando, até o visual do blog tomou outra cara. Confesso que não gostei muito do novo modelo, este cinza, este rosa, sei não, de qualquer forma, é outra coisa. Isto basta. Esta praça(?) aí no canto superior direito convenceu-me, sabem como é: praça, público, coisa, república, opinião pública, café, frança, autonomia. O som desta sequência agrada-me em vários níveis.
Então
domingo, 10 de dezembro de 2006
-- Vamos lá, filha! Força na perna!
Após várias tentativas e bastante esforço para uma menina de cinco anos, ela arrancou e saiu toda faceira. Logo atrás dela, passou também ao meu lado, sem problema com a elevação do piso, uma velha senhora, magra, retorcida, olhar penoso e cabelos esgrenhados, sendo empurrada numa cadeira de rodas.
Minha garganta secou, minha cabeça pesou e demorei um bom tempo para voltar à minha leitura.
sábado, 9 de dezembro de 2006
segunda-feira, 4 de dezembro de 2006
terça-feira, 28 de novembro de 2006
(vai vendo)
Eu tenho a coragem de morrer de amor. E, para mim, a paixão nunca traz dor. Dou a ele toda a devoção da vida, num só instante, sem momento de partida.
Posso dizer a ele tudo o que é preciso ouvir, todo este papo de tempo que insiste, existe e há de vir. Já disse que eu quero, tenho absoluta certeza e, de repente, tenho a sua vida a meu dispor.
Eu vejo, eu sei como é lindo morrer de amor. E morro.
Éca. Tem graça?
O amor é sempre mais bonito no condicional, não sei porquê.
domingo, 26 de novembro de 2006
domingo, 19 de novembro de 2006
(quem sabe eu não me enforco com ela?)
segunda-feira, 13 de novembro de 2006
domingo, 12 de novembro de 2006
A certidão diz que eu sou Ana Clara, mulher, branca, nascida em 1984; o diploma diz que eu sou jornalista; a carteirinha diz que eu sou estudante; o título diz que eu sou eleitora; o cartão diz que eu sou uma correntista; o extrato, que eu sou uma devedora em potencial; o cpf, que eu existo pro Estado; o rg, que meus pais são quem eu acho que é; o cartão do convênio, que meu corpo pode pirigar a qualquer momento; meu email, que eu sou internauta.
Agora, tenho uma séria dúvida se um dia queimarem tudo isto.
terça-feira, 7 de novembro de 2006
sexta-feira, 3 de novembro de 2006
A minha voz e a vez dos outros
Os deuses,
que não perdem jamais uma oportunidade
de ferir, contrariar e de destruir
quarta-feira, 1 de novembro de 2006
Não. Não vou lançar um desafio porcaria de “o que é, o que é”, nem propor uma pergunta existencial de cunho altamente filosófico (se existencial-filosófico não for pleonasmo), tampouco esperar que entendam tudo o que escrevo, mas não resisti à tentação de discorrer sobre algumas observações.
Há certas peculiaridades na linguagem que nos permitem escrever sem ter escrito e dizer sem ter dito. Não sei fundamentá-las com argumentos assaz consistentes – espero que um dia possa –, muito menos descrevê-las aqui, nua e cruamente, já que seria preciso explicitar o dito não-dito e, pior, escrever o não-escrito. Mas, tentemos.
O princípio é semelhante ao do mecanismo de olhar uma imagem, ou seja, o mesmo processo do ver sem ter visto. Na “carta sobre os cegos”, de Diderot, é explícita a possibilidade de um cego de nascença conceber figuras geométricas em sua mente. Se elas se assemelham ou não ao que realmente “vemos” é outra história. No entanto, “ver o que realmente é” não importa muito, principalmente no que diz respeito a enigmas, coisas não-ditas, não-escritas e afins. A questão é que o cego “vê” uma figura com os mesmas características e princípios geométricos-matemáticos mesmo sem ter visto.
Caindo para o senso comum, também podemos trazer aqueles fenômenos de força da crença em que os indivíduos, dotados de alta carga emocional, declaram enxergar aparições, luzes ou qualquer coisa do gênero, que escapam às pessoas que não se encontram no mesmo estado de pertubação.
Dito isto, as coisas escritas e ditas seguem a mesma linha. É claro que nesta analogia perde-se muito, pois são formas de comunicação com funcionamentos e conexões muito díspares, mas o processo de “ocultamento”, ou melhor, não-explicitamento é o mesmo. Portanto, somos capazes de capturar diversas interpretações não-verbalizadas que se encaixam perfeitamente nas suas respectivas formas de expressão – escrita ou falada – como o cego vê uma figura com os mesmos princípios matemáticos.
Tá, isto não é nenhuma novidade, mas o que mais me atrai nesta explanação toda é o que escrevemos sem ter escrito, intencionalmente. O zênite desta qualidade está restrito aos poetas, aos melhores poetas. E, se considerarmos o plano da sensibilidade emocional feminina, podemos dizer que somos as leitoras que mais encontram não-escritos e, principalmente (para horror do sexo oposto), não-ditos. Isto não significa, necessariamente, uma superioridade, tampouco uma inferioridade, apenas uma constatação. Apesar desta imparcialidade um tanto falsa de minha parte, não para o lado feminino, mas para o lado masculino, a questão dos gêneros torna-se um tanto irrelevante para o trabalho do enigma linguístico. Uma qualidade excepcional presente apenas em alguns e algumas que, sem sombra de dúvida, não deixam de ocupar minha prateleira e meu browser.
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O que ouviu os meus versos disse-me: Que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, ninguém
Porque todos amam as flores por serem belas,
[e eu sou diferente.
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra,
[mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores,
[directamente.
Eu amo as árvores por serem árvores,
[sem o meu pensamento.
Fernando Pessoa
sábado, 28 de outubro de 2006
O moinho que toca suas hastes lentamente sobre o rio dos dias começa a rodar em sentido contrário e joga para o alto, com suas espátulas gigantescas, toda a compreensão rotineira do passar das horas. Mas o tempo é implacável, meus amigos, e, para toda tentativa de mudança de sentido, nada que um escorrer embrutecido de uma seqüência semanal não obste as hastes do moinho e façam-nas voltar à sua tediosa mesmice.
O tempo da razão, meus senhores, situa-se no alto da montanha e o único modo de lá fazer brotar esta força que desce brutalmente e se impõe sobre os moinhos é aguardar pela passagem pura e simplesmente da cronologia.
Eu estou beirando a loucura. Ainda estou longe de um colapso geral na montanha, assim espero, mas meus moinhos giram completamente desgovernados e insensíveis à jorrada de dias, semanas, meses, que insistem em desaguar brutalmente sobre os meus, até então, verdes pastos, campos floridos, casinha de palha, feno no celeiro e vaquinha no curral. Tudo bem que no meu pasto tinha erva daninha, no meu campo pestes horrendas, na minha casinha conflitos e ameaças de morte, o feno estava mofo e a vaca prenha de um cavalo; mas são meras idiossincrasias quando o dilúvio se faz presente. O único refúgio é a saleta situada no topo do meu moinho que insiste em girar incansavelmente sobre a torrente espalhando as fúrias: a minha e a do tempo.
Em meio a este colapso hediondo, um pedaço de mim chamado amor debruça meu corpo cansado no parapeito da janela – enquanto as hastes passam furiosas rentes ao meu rosto e o caos se faz presente por todo o espaço –, estende meu pensamento ao infinito, faz-me colocar uma mão sobre o queixo e suspirar deliciosamente pelos momentos mais abstratos do interlúdio, aquele tempo encaixado entre o depois do fim em um, o depois do início em outro e a impossibilidade em ambos.
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E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acentos
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
H.H
quinta-feira, 26 de outubro de 2006
O pior dos julgamentos é o tribunal do Ego.
Meu banco dos réus está repleto de "eus", eu assim, eu assado, eu cozido, eu cozinhado, eu mal passado, eu bem passado, eu... eu... Eu! Coisa mais repugnante eu em várias versões, quer coisa mais egocêntrica, sem graça, repetitiva e entendiante? Um dia, daqui muitos anos, vou virar uma Ana Clara Pessoa e inventar alguns heterônimos para, pelo menos, conseguir preencher a primeira linha da ata do meu julgamento. Por enquanto, a situação está uma zona, pior que funcionalismo público em véspera de feriado com troca de governante.
Como se não bastasse este caos (também) ignóbil, a solução dos heterônimos já começaria com um impasse: minhas pessoas não têm sexo. Digo, na verdade, elas até gostam, mas não se comportam de uma maneira constante tal que poderíamos lhe atribuir algum gênero. Para resolver este problema no plano da linguagem, pensei em atribuir nomes uni-gêneros como Lair, Alaor e acabou. Só sei estes. Mas eu não gostei destes nomes e, para conhecermos alguma coisa, temos que lhe atribuir nomes. Se eu coloco um nome que eu não gosto, já não vou gostar dos atribuídos e, por tabela, todas as pessoas serão réus e não haverá sequer um juiz, dirá um promotor. Por causa do nome.
Esta idéia do Pessoa já começou a alvoroçar o tribunal e causar ainda mais confusão, mas continuemos. Já que até alguns séculos atrás as mulheres não encenavam e, nem por isto, não deixava-se de produzir comédias... e tragédias com ambos gêneros.
E lá estão "eus", sem sexo, sem nome. Um bando de gente estúpida que não sabe o que fazer com suas bandeirinhas de plástico vagabundo, pom-pons berrantes e roupas sedutoras. Mas não adianta, o promotor, superego, é implacável. Sim. O promotor é um saco: não se rende a qualquer fantasia barata comprada na loja de conveniência, tampouco na boutique mais high-society do universo. Porém, ele se rende a coisas simples, como a menina tímida "feia-da-sala" de óculos, no último dos bancos, sentada com seus pézinhos a balançar, disposta a esperar uma eternidade para ser ouvida. E não pensem vocês que, só por isto, ele deixa de ser vil.
sexta-feira, 20 de outubro de 2006
quinta-feira, 19 de outubro de 2006
quanto maior a lucidez, maior a probabilidade de nos ofuscarmos com a luz. A força que fazemos ao comprimir os olhos diante de uma irradiação intensa desvia a energia do pensamento. O que acontece? Ora essa, ou ficamos loucos ou damos o crédito ao inconsciente. A intensidade não importa, eles preferem ficar com as sombras. Elas têm forma, a luz não. Para os cegos, é isto que importa.
domingo, 15 de outubro de 2006
Eu tento levar a sério as coisas que me dizem. Portanto, sempre tendo a começar um texto com "disseram-me uma vez que...", porque assim me disseram e assim eu tentei fazer. Não fico surpresa quando o "disseram-me" sempre erra o alvo (confesso até esboçar um sorriso sarcástico). A semântica monta o arco, o significado puxa a flecha e a palavra dita irrompe da arma rasgando o ar, sugando-o de qualquer outra intenção não-dita. Há quem consiga força para lançá-la à lua, e erra o alvo. Há quem é fraco, franzino e pedestre e articula uma combinação certeira. Há quem una potência e precisão, mas isto fica por conta dos gênios.
E, em meio a esta competição toda, preciso avisá-los de algo que "não me disseram uma vez que". Pois é, desta vez, não me avisaram: esta flecha tem rabiola. Sim, estou te falando, a palavra dita tem rabiola. Trata-se de uma mistura (im)perfeita do pretérito pipa com o futuro da flecha. Estou enrolada com várias rabiolas. Quem manda soltar um monte de flechas?
quinta-feira, 12 de outubro de 2006
Memorial em homenagem à quase falência múltipla de meus neurônios que, apesar do trabalho mouro desta semana, não param de pular que nem tico-e-teco na brinquedolândia. Ana Clara porque, sim, mesmo labutando o dia inteiro do feriado (?), não perdi a noção de quem eu sou - assim espero. Mas ainda me pergunto para onde eu vou, de onde eu vim, onde eu estou, por que eu estou. Moura porque, bem, eu acho que vocês já entenderam.
Quanto à concretude deste título, peçam a nota do pedido e enviem ao setor financeiro.
quarta-feira, 11 de outubro de 2006
domingo, 8 de outubro de 2006
quinta-feira, 5 de outubro de 2006
A rotina de Frederico ao voltar da escola era constante: limpava seus pés no primeiro tapete da casa, ainda na calçada; abria lentamente o portão enferrujado, levantando a aba do trinco com uma habilidade inigualável, pois conseguia fazê-lo sem irromper um barulho sequer. Três degraus da escada separavam-no da entrada principal, e até hoje Frederico se pergunta por que seu coração palpitava tanto neste momento. Sua bermuda escolar subia e descia ao longo de suas coxas, enquanto ele subia vagarosamente aquele ínfimo lance de escada. Por alguns segundos, Frederico gostava de admirar a grandiosidade da porta de sua casa (um pedaço de madeira enorme, recheado de ornamentos, cravejado de pedras, com uma maçaneta suntuosa e um peso doentio). Seu pai proclamava muitas vezes a nobreza jurídica desta porta às visitas: “é madeira de lei”. Entretanto ele nunca entendera muito bem esta afirmação, e, quando lhe apresentaram o símbolo da Justiça, acreditou que por trás daquela venda havia dois sedutores e enormes olhos azuis.
Depois da contemplação, ele limpava os pés no segundo tapete da casa e abria a porta. A única pessoa a sorrir com sua chegada era Constantina. Seus olhos corriam a casa de ponta a ponta, da esquerda para a direita, e vice-versa, freneticamente em todas as vias, se seus pais não estavam, ele rompia da entrada da casa correndo em direção à serviçal e dava-lhe um abraço longo e apertado. E Constantina, feliz pela espontaneidade da criança e também tensa pelas conseqüências desta cena – caso os pais de Frederico vissem-na –, recebia o calor do menino em seus braços e saía apressadamente com a criança no colo para a cozinha.
Este momento era o mais prazeroso. Ambos sabiam tácita e silenciosamente da restrição temporal daquele deleite. Portanto, trocavam as experiências do dia em ritmo acelerado e divertido. Frederico contava com a boca cheia de bolo seu gol de placa, repetindo o gesto do goleiro com o copo na mão e um bigode de leite acima dos lábios. Enquanto Constantina usava a colher de pau, em que mexia a panela de doce, para imitar o verdureiro a quem soltou vários desaforos por ter insinuado um elogio a seu decote. Por vezes, disparava a cantar para a criança a última música que aprendeu usando a própria colher como microfone.
Porém, o clima amistoso não durava muito tempo. Não só pelos barulhos de escada rangendo, que denunciavam a desconfortável presença da mãe em breve, mas pelo motivo da felicidade encantadora e sarcástica daquela que descia a escada: o destino de Frederico. Ele também nunca entendera porque as ancas menores de sua mãe eram mais assustadoras do que as enormes de Constantina, mas de uma coisa ele tinha certeza: o tal futuro era tão aterrador quanto aquelas ancas finas, e não passava de mais nada além do momento em que o riso é embotado, o bolo é indigesto, o leite é derramado, o pudor é duplicado e Constantina volta às panelas.
segunda-feira, 2 de outubro de 2006
sábado, 16 de setembro de 2006
sexta-feira, 15 de setembro de 2006
Na verdade,
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
pra ver a banda passar
mas não gosto de cantar coisas de amor
A minha gente sofrida
não despediu-se da dor
eles só querem ver a banda passar
e cantar coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro morreu
O faroleiro que contava vantagem morreu
A namorada que contava as estrelas morreu
Mas seus filhos ainda preferem ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada se prostituiu
A rosa triste que vivia fechada se despediu
E a meninada toda se banalizou
Pra ver a banda passar
e cantar coisas de amor
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e se matou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha fúnebre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se alienou
Pra ver a banda passar e cantar coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era ruim se eternizou
Tudo piorou no seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
E eles cantarem coisas de amor
quinta-feira, 7 de setembro de 2006
domingo, 3 de setembro de 2006
Senhor delegado, eu só queria tomar banho dignamente. É certo que o fim da nossa relação não foi muito boa.
sexta-feira, 1 de setembro de 2006
Isto eu hei de defender até o fim. Enquanto as mulheres se deleitam em postar textos e mais textos sobre o grande amor de suas vidas, chorando, lamentando-se, colocando poemas, músicas, cantigas etc etc; os homens escrevem textos maravilhosos e, por mais apaixonados ou frustrados que estejam, não entregam o coração de bandeja esbaldando-se em palavrórios melosos. Ok, há as malditas (ou melhor, benditas) exceções, mas nada que desafie a regra. Vejam, eu estou falando das pessoas que possuem algum tino literário e cerebral. Lixo é lixo, não tem conversa.
Machismo? Não. Cons-ta-ta-ção apenas.
quarta-feira, 30 de agosto de 2006
Não sou escrava de Jó, nem jogava o Caxangá, mas tenho uma séria dificuldade em decidir o que tirar, o que pôr e o que deixar ficar. No processo de multiplicação, abstenção, aquisição, distribuição e subtração dos problemas e loucuras diários, sempre resta alguma peça no lugar errado – como aquela mão desajeitada que não sabe acompanhar o jogo e a música ao mesmo tempo e acaba enrolando todas as peças da brincadeira.
Há certos dias – poucos, mas há –, em que as loucuras, na correria insana da rotina, acabam tomando seu rumo e combinando-se, umas às outras, perfeitamente. Uma sinfonia tão bem regida que elas passam despercebidas. Por incrível que pareça, os problemas não se atrapalham em meio ao furor cotidiano e, ao fim do dia, eu me olho no espelho, dou uma piscadinha, desenho um “Z” no vapor acumulado e esboço um singelo sorriso.
Porém, como não dá para ensinar todos os meus neurônios e intuições a jogarem ao mesmo tempo, com a mesma rapidez e habilidade, as peças acabam embaralhando-se todas mais freqüentemente. Para impedir um colapso geral do jogo, escondo algumas loucuras; cochicho uma correção à razão; deixo algum problema estagnado para a próxima rodada; dou um jeito. Afinal, nem sempre, como na brincadeira tradicional, eu tenho uma peça por passagem. A vida é um pouquinho mais complexa.
O imbróglio se dá mesmo no final: depois de todas as artimanhas para articular e arranjar as loucuras e problemas e combiná-los com a música, quando tudo parece estar definido para o fim do jogo, os malfadados guerreiros não me deixam decidir onde colocar as peças. É um tal de peça que vai, mas volta; parece que fica, mas vai; loucura indo, razão voltando, problema multiplicando e tudo vira uma imensa lambança.
terça-feira, 29 de agosto de 2006
segunda-feira, 28 de agosto de 2006
domingo, 27 de agosto de 2006
Uma mulher -- estereótipo da empregada doméstica-- começa a testemunhar sobre os inumeráveis benefícios de aprender a ler e a escrever: "Agora, eu posso ler as receitas da minha patroa e fazer tudo que ela gosta. Ninguém precisa mais me ajudar..."
Um homem, caracterizado de porteiro de edifício de luxo, segue na mesma linha: "Agora, posso ler as correspondências e entregá-las exatamente ao seu dono, sem problemas. Até sei anotar recado!"
E assim termina as propagandas da campanha de alfabetização solidária. Ninguém vai se alfabetizar para mudar de posição, para voltar aos estudos, para entrar numa faculdade, para aperfeiçoar o raciocínio, nada neste sentido.
O aprendizado é para servir melhor os patrões, afinal, "vocês, analfa, não conseguem nem anotar recado, nem fazer um bolo sozinhos! Bando de incompetentes. Mas nós, pessoas muito legais, oferecemos-te a oportunidade de serem empregados mais eficientes, pedindo, pela televisão, que os teus patrões ajudem a nossa campanha". Uma espécie de manutenção qualificada do status-quo.
É mole?
Uma campanha, por uma causa tão boa, enviesada desta forma, é revoltante.
sexta-feira, 25 de agosto de 2006
Zeca Baleiro
quinta-feira, 24 de agosto de 2006
"ACESSO RESTRITO SOMENTE A FUNCIONÁRIOS"
Aviso pregado numa porta, no corredor do prédio do IFCH, na Unicamp.
Nota: o acesso é exclusivo aos funcionários.
quarta-feira, 23 de agosto de 2006
Vejamos um exemplo: Fernando Henrique Cardoso. Como intelectual, é indiscutível. Na juventude, diz sua bibliografia, lutou pelo avanço dos direitos políticos, sociais, participou do MDB, estudou, foi ativo na política (entendida como sistema de pressão para fazer-se ouvir na classe dominante, no caso, a ditadura). Depois que envelheceu, atingiu o poder e pediu, solenemente, para todos esquecerem o que havia escrito. A despeito da sua própria história, pediu: esqueçam, simplesmente, “esqueçam o retorno”. Não diria c’est la vie, mas c’est Brasil. O problema aqui não é o político que ele se tornou, o presidente que foi, nem o pedido que fez, mas a posição que ele tomou. Se, com uma história de luta, participação, inteligência que Cardoso teve (e tem) sua atitude, depois de “amadurecido”, foi abandonar a memória e viver o presente, o que dizer da senilidade da nossa juventude? Nossa geração já nasce sem história. Não vai ter nem o quê pedir para esquecer, não fez nada mesmo.
Claro, há exceções. Posso citar diversos “senhores” como o pai da minha amiga (já citado neste blog) que passou pela ditadura como o melhor dos mundos; lê Veja; é refém do cartão de crédito, do último celular high-tech, do carro nova geração; acha todos os “Fernandos” o máximo: Fernando Henrique, Fernando Collor, Fernandinho Beira-Mar e, claro, que todas as desgraças do país são culpa do Lula. Ou será que este tipo já tinha virado regra? De todo modo, seremos a versão ultra-piorada de uma versão já e infelizmente piorada.
Deixemos os exemplos de lado.
Às vezes, eu costumava dizer que a geração de 84 foi a última que teve infância. Não errava, só faltou aprofundar mais e incluir quesitos mais relevantes que, por sua vez, definharam vertiginosamente da minha geração em diante. Sim, como sempre, há aqueles que são exceções mas, a partir dos oitenta-e-quatrianos (um pouco mais ou um pouco menos), começaram a tornar-se regra.
Minha preocupação intensifica-se quando leio Ítalo Calvino (aliás, foi a partir deste trecho abaixo que me inspirei para este post).
De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente.
Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmo (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo.
Portanto usar o verbo ler ou verbo reler não tem muita importância.
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sábado, 19 de agosto de 2006
Feliz com a instalação da internet banda larga e triste pelo meu computador destruído por um vírus. Pensando bem, não é tão paradoxo assim... o resultado é pior do que a situação anterior.
Agora, nem escrever em casa posso mais. Portanto, caros amigos, a produção intelectual (se é que podemos chamar assim) deste blog está nas mãos dos técnicos. Ainda bem que eles existem.
terça-feira, 15 de agosto de 2006
Ri e olha de repente
Mas o olhar, de estar olhando
Fernando Pessoa
__Exercício__
Existe uma técnica por meio da qual é possível perceber com quantas mãos tocam-se uma música exclusivamente de piano. Na verdade, eu estou elevando a categoria, não é uma técnica com toda rigorosidade que esta palavra pode requerer, mas um afinamento auditivo peculiar, um dom que não necessariamente é restrito a músicos, ou a quem já fez aula de música. De qualquer forma, quem já freqüentou uma escola de piano, como é o meu caso, adquire esta habilidade.
Como todos sabem – se não, passam a saber agora – eu perdi uma das quartas partes do nível de audição na infância. Portanto, possuo uma certa relação visual com o som; desenvolvi, digamos assim, um sentido meio sinestésico, por meio do qual não sei diferenciar os limites de uso da vista em relação à audição considerados normais numa pessoa saudável. Sem dramas, é praticamente imperceptível e não há problema algum.
Há uma música, que adoro muito, cuja composição é só piano (“Comptine d'un autre été L'après Midi”, de Yan Tiersen). É incrível como consigo “ver” a movimentação das mãos e, principalmente, quantas trabalham na canção, no caso, quatro. Como se descobrisse a “verdade” por detrás da obra, ouço-a diversas vezes e sinto um prazer em parte egoísta, em outra de superação. Egoísta por achar que só a alguns é delegado o direito de ter esta “visão”, fato que perpassa, de certo modo, pelo malfadado sentimento de superioridade cujo resultado, se não bem administrado, é abominável. Superação por, ao ter em meu (in)consciente esta deficiência, poder “sentir” a música em sua “totalidade” – visto que, em relação aos normais, minha percepção estará sempre com o botão de volume algumas voltinhas para baixo.
Estive pensando, se elevarmos este quadro para uma outra escala, mais abrangente, teremos um cenário interessante.
Sem romantismos, nem melodramas, consideremos a vida como a execução de uma música. Execução nos dois sentidos: de “levar a efeito” e “cumprimento de uma sentença”, no caso, a morte. Afinal, “viver é morrer”. Alguns tocam a vida como uma valsinha chata e repetitiva; outros como uma verdadeira sinfonia alternando picos de tristeza, notas graves; silêncio absoluto longo e curto; alegria, notas intrépidas; sonatinas, loucura, sem, no entanto, perder a harmonia total do caráter mesmo que, aos olhares abstratos, estas alternâncias determinem uma essência corrosiva (mera falácia); outros, ainda, são completamente desafinados. E tal desafinação, muitas vezes, cria uma saga irreverente, uma harmonia peculiar que só é descoberta quando se faz o silêncio; e assim por diante. Para além destas comparações um tanto óbvias e batidas, está a própria construção da moral e da percepção do tempo por meio da música cuja relação Mann faz perfeitamente na fala de Ludovico Settembrini:
“...[Há] um fator incontestavelmente moral na natureza da música; a saber, que ela mede o curso do tempo de uma forma especial e cheia de vida, e assim lhe empresta vigilância, espírito e preciosidade. A música desperta o tempo; desperta a nós, para tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta... e portanto é moral. A arte é moral na medida em que desperta. Mas que sucede, quando ela faz o contrário? Quando entorpece, adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe perfeitamente agir como ópio. [...] O ópio é uma obra do Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil. [...] Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita” A Montanha Mágica, de Thomas Mann.
Então, temos moral, tempo e vida. Ora essa, no que diz respeito ao espírito, temos os elementos necessários para uma reflexão acerca de qualquer coisa, em qualquer ordem. Veja, até para se chegar à amoralidade, é necessário tempo e vida. Neste caso específico, o item moral pode ser “retirado”. Para todos os outros, ou ele é atacado, ou é defendido, ou é relativizado, e, de uma forma ou de outra, é tratado.
Agora, suponhamos que é possível para alguém visualizar quais são as “mãos” e de que forma elas atuam na composição daqueles elementos constitutivos de sua própria personalidade – como “essência” subjetiva – e existência como ser físico. Parece-me que Nietzsche responde quem é o alguém capaz de enxergar esta movimentação: os espíritos livres.
"Em geral, todo progresso tem que ser precedido de um debilitamento parcial. As naturezas mais fortes conservam o tipo, as mais fracas ajudam a desenvolvê-lo. – Algo semelhante acontece no indivíduo; raramente uma degeneração, uma mutilação ou mesmo um vício, em suma, uma perda física ou moral, não tem por outro lado uma vantagem. O homem doentio, por exemplo, numa estirpe guerreira e inquieta, poderá ter mais ocasião de estar só e assim se tornar mais tranqüilo e sábio, o caolho enxergará mais agudamente, o cego olhará para o interior mais profundamente, e em todo caso ouvirá com mais apuro” Enobrecimento pela degeneração, em Humano, demasiado humano,de Friedrich Nietzsche
Por meio de uma limitação física ou moral, o indivíduo pode progredir no campo do espírito e, desta forma, desenvolver a capacidade de visualizar os movimentos que entoam nas esferas da sua formação. Veja, o espírito livre, dependendo do nível de argúcia, é capaz de identificar, além do modo, QUAIS são as notas tocadas – da tradição, da razão, da emoção, do pudor, etc. Isto, diz Nietzsche, gera um ser superior. Superior no sentido de que adquiriu esta habilidade de “ver” a maneira pela qual a música é tocada. Este fato, por sua vez, ganha ares de “descoberta da ‘verdade’”, sem, no entanto, sê-la absolutamente. Contudo, o espírito livre possui esta debilidade física e/ou moral, logo, esta “visão aguçada” impute-lhe o prazer da superação de suas próprias limitações tanto objetivas quanto subjetivas, tanto inconsciente quanto conscientemente.
Apesar da astúcia e do refinamento destes espíritos, ainda falta muito para descobrir QUEM está por detrás de toda esta melodia, por enquanto, os créditos ficam para a Verdade, outro Pacu da sociedade.
quinta-feira, 10 de agosto de 2006
Na cozinha de casa há dois botões de rosa numa garrafa d’água. Quando cheguei, olhei bem para eles. Faz exatamente dois dias que as flores estão sobre a pia, portanto já perderam aquele vigor intenso, típico das rosas vermelhas; elas já estão prostradas e no início do processo de murchidão. O tempo também passa para e pelas rosas.
Abri o armário, peguei uma bolacha e, em meio àquele estado letárgico de saciação quase infantil, passei a fitá-las. Uma ponta de alegria invadiu-me a alma quando notei que uma pétala afastara-se sutilmente de um dos botões. No entanto, o outro, parece-me, desistiu de caminhar pela saga do desabrochar e encontrava-se literalmente de costas para mim, sisudo, carrancudo e introspectivo. Com este não havia papo, decidiu-se virar e esperar os dias restantes para o destino nefasto de todos os seres vivos.
Com meia bolacha na mão, aproximei-me mais e observei, através de meus olhos de lince hipermetrope, a astúcia da pétala. Não deveria tê-lo feito. Num súbito, incorreu-me a possibilidade de, ao ver o estado moribundo da rosa, ser um fator secundário: num determinado momento, alguém passou por ali, esbarrou a mão e ocasionou o deslocamento daquele pedaço da corola do centro condensado; portanto, a cena que acabara de me encantar não teria um centésimo do lirismo que lhe atribuiria se continuasse persuadida pela idéia de “esforço sobrenatural” para o abrolho. Afastei-me um pouco para ter certeza de que aquilo não era resultado de uma aproximação exagerada. De fato: em relação ao botão carrancudo, a rosa lírica avançou de forma significativa. O corolífero, todo aberto, aguardava servilmente o pouso das pétalas em seus braços. Estas, por sua vez, já tinham perdido o caráter condensado de botão e a flor iniciara a saída de seu estado casuloso, mesmo com o aspecto cansado, pétalas enrugadas e folhas amareladas.
Será que o botão carrancudo sabia de seu destino e desistira de tudo? Será que a rosa lírica era uma alienada e perdia seu tempo? Será que a lírica sabia, mas era irônica? Será que o sisudo não sabia e, por isso, não se preocupava em desabrochar logo? Será que o sisudo inveja o abrolhar da regalada? Ou acha-o desperdício de energia? Será que a regalada tem dó do carrancudo? Ou abriu-se para atacá-lo? Eles se “vêem” ou são fatores isolados? Por que uma abriu, o outro não? Por que o tempo passou tão diferente para os dois? Por que...? Será...?
Terminei a bolacha e, sem desviar os olhos, peguei um copo d’água. O líquido tonificava meu corpo do adoçamento, enquanto pus-me novamente a pensar que ambos, em pouco tempo, estariam ressequidos, amarronzados e mortos. E dei a questão por encerrada com o último gole.
segunda-feira, 7 de agosto de 2006
7:45hs
"Aaaaaaahhh! Socorro! Minha bolsa! Aaaaa! Levaram minha bolsa. Filho da puta! Olha lá, ele está correndo! Minha bolsa... pega!!! [choro]"
Acordei ao som destes gritos, uma mulher foi assaltada na porta do prédio em frente. Eu e todos os moradores deste e do meu edifício saíram às suas respectivas janelas para verificar o que ocorria. Tive a rara oportunidade de conhecer meus vizinhos:
Uma família -- pai, mãe e três crianças assistiam à cena do assalto amaçarocados na janela, como se disputassem um lugar no sofá para assistir à novela das oito; um ancião de expressões profundas, sulcos marcantes no rosto, mantinha os cansados olhos baixos e parecia ter a certeza de que aquilo, mais dia ou menos dia, ia acontecer. Quando nossos olhares encontraram-se, eu li em sua face um convicto "não disse?"; um jovem, preparando-se para sair ao trabalho, arrumava a gravata, impassível. Estava ali por acaso, sequer notara o que acabava de acontecer; dois recém-casados (vi-os chegar com o carro todo enfeitado, pintado e latinhas penduradas na traseira) debatiam fervorosa e preocupadamente o fato. O rapaz segurava um telefone na mão e descrevia o acontecimento para, ao que parecia ser, a polícia, enquanto a garota ia em seu encalço também desconsolada; uma senhora, rindo discreta e desdenhosamente, chamou-me a atenção, pois eu estava certa de que a encontraria, pouco tempo depois, entre as portarias dos prédios (cuja distância é uma rua bem estreita) contando todos os pormenores a qualquer morador que passasse por ali.
E assim incluo mais pessoas comuns no meu armário de conhecidos e, claro, alguns olhavam, de alguma forma, pra mim, afinal eu encontrava-me numa mistura assustadora: espanto com os gritos, rosto amassado pelo travesseiro, espasmo pelo cenário total da vizinhança e incômodo, muito incômodo, quase um tormento pelo diagnóstico que tal fato é possível, a partir somente desta pontícula do Iceberg.
10:30hs
Parei numa esquina e esperava o semáforo de pedestre abrir. De repente, Blam! Péim! Plec! Pow! Pow! Trec! Péim! Plec! Póft!, uma mulher destruía um orelhão ao meu lado. Ela agarrou o fone com todas as forças possíveis e batia violentamente no aparelho, puxou o fio e foi detonando tudo, sem menear, nem pestanejar e sem receio de quem estivesse olhando. Como eu era a pessoa mais próxima, ela virou-se pra mim e disse: "Só não quero que me façam de palhaça! Esta merda de Telefonica!! Fui lá reclamar que o orelhão engoliu meu cartão, veja, o orelhão que tem em frente de casa e eles, além de não me pagarem pelo dinheiro perdido, disseram que não existia telefone público no meu endereço!! É dinheiro, moça! Eu trabalho e estes cretinos ficam rindo da minha cara e esta porcaria de Procon não serve pra nada! Eu não gosto de destruir as coisas, nem é da minha índole. Mas palhaça eu não sou...!!".
Eu ouvia e concordava, quase disse a ela que daria uma ajuda com uns pontapés, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ela acrescentou: "e que venha a polícia aqui! Eu quero que eles venham, cadê? Eles só prendem os pobre-coitados inocentes que têm medo deles. O Marcola, o PCC, o Beira-Mar tudo manda eles irem se fuder (sic) e estão aí... soltos ou com cela de luxo. Eu destruo mesmo... quero ver alguém aparecer...". O sinal abriu, perguntei à mulher se não queria atravessar comigo, ela agradeceu, mas negou minha oferta, disse-me que tinha um serviço a terminar. Desejei-lhe boa sorte [sem ironia] e continuei meu caminho...
Ai que inveja... e vontade.
Bom, assim começou o dia de hoje, depois de ter ido dormir com as palavras de Fidel na cabeça (pendurei uma matéria da Folha e outra do Estado na porta do meu quarto). Esta história de enxergar melhor com meus novos óculos está trazendo resultados... preciso articular-me, agora, para conseguir uns braços e umas pernas de ferro.
O dia ainda não acabou, falta presenciar uma agência bancária explodindo, ou então a ação de alguma versão brasileira de Edukators... mas sem perder a ternura jamais.
domingo, 6 de agosto de 2006
Com o coração em ordem, claro, nada que um final de semana com muito trabalho chato e estressante não resolva, estou de volta.
Vou seguir outra linha nesta parafernália bloguística, e tentar não fazer "posts" em casa, porque eu penso muito sobre eles e... bom... estou afim de treinar a agilidade.
Como todos sabem, não tenho internet em casa, portanto luto incessantemente com o reloginho das lan-houses para escrever todo o montante de idéias que circulam em minha cabeça. Como diria um amigo chato que encontrei e, infelizmente, tive que almoçar com ele (foi inevitável): aqui na lan "eu não peço cardápio, só digo 'o de sempre'". Pés-si-mo, não é?! Também achei, mas a metáfora foi boa.
Para contribuir com meu fôlego sentimental e físico renovado, adquiri um "visual": voltei a usar óculos. O objeto é tão estereotipado que, batata, não passo por ninguém sem o malfadado comentário: "nossa, ficou com mais cara de intelectual". Credo! Nestas horas, é melhor não dizer nada. Quem dera a solução tivesse nos óculos... se bem que, atualmente, muita gente vive na cegueira, mas isto é outra discussão. De fato, eu estava precisando das lentes e a narração da minha consulta merece um capítulo à parte.
Econo-mediquês
Depois de quarenta minutos, com os olhos esbugalhados de tanto colírio, o doutor -- provavelmente de saco cheio de tanto eu confundir "X com Y e V", "N com H", entre outros -- declarou meu diagnóstico: "Seu grau aumentou bastante: 1,75 nos dois olhos. Mas eu vou te dar um desconto". Nesta hora, imaginei um convênio com uma ótica, um óculos mais em conta, um bônus na mensalidade do plano de saúde, quelque chose. Ele continua: "vou te receitar 1,25 no direito e um no esquerdo, porque você rejeitou mais de 50% do grau anterior sem o uso do colírio. Além disto, o custo de usar um grau com este índice e blá blá blá".
Eu me senti num mercado livre de graus, visões, hipermetropias e astigmatismos. Tudo assim, com desconto, custo, eficiência, índices. Só faltou ele falar que os títulos da dívida hipermétrope estavam em baixa por conta de um desvio na variação cambial astigmática!
Pedi para ele refazer algumas colocações porque daquele econo-mediquês eu não estava entendendo nada.
Saí com a solução para a vista, mas com um problema de comunicação.
segunda-feira, 31 de julho de 2006
Se isto fosse um diário teria várias coisas a falar: as minhas aventuras pelo mundo gastronômico e artístico, o aniversário do meu pai, a entrada triunfal no universo dos adeptos da cafeína (e, a despeito da irrelevância de um mero hábito adquirido por uma jovem jornalista, é um processo interessante, a julgar pelo caráter subjetivo que tal aquisição possui), a xícara em cima do dicionário para não manchar a mesa e outras idiossincrasias cotidianas irrisórias.
Se fosse seguir a “tradição” deste blog – ou seja, nada mais do que estes detalhes funestos por uma ótica egoísta, persuasiva e, de certo modo, reflexiva –, teceria aqui uma série de assuntos acumulados nos meus arquivos mental e computacional. Há vários temas interessantes – para mim, pelo menos – como um “mini-ensaio” de Buenos Aires 100km; o mote da obra O último leitor de cujo conteúdo só conheço uma frase da sinopse; uma principiada impressão das primeiras duzentas páginas de A Montanha Mágica; e uma síntese e alguns filmes que aluguei para os dias chuvosos.
Mas, porém, contudo, entretanto, no entanto – como sempre realçam os falantes quando desejam enfatizar a adversidade das frases seguintes – um pensamento assaltou-me o final de semana inteiro. Um pensamento proibido, não, note-se, em virtude moral (daria uma discussão bastante magníloqua), mas social.
Admito que tal pensamento – ou sentimento, não sei, estou confusa – faz-se presente há tempos e, atualmente, não sai da minha cabeça, ou do meu coração? Ou de ambos? Entendo-o como uma mistura de angústia, saudade, alívio, tristeza, compaixão, paixão, raiva, ternura, aversão, indiferença, preocupação, mas nenhum em específico. É um amálgama de coisas sensíveis sem nome. Que tal um senti/pensamento Pacu? Em referência a Abril Despedaçado, onde nomeiam de Pacu o menino que chama Menino, ou seja, também um “sem nome”. Não encontro definição mais apropriada.
O fato é: não pude conter-me, mandei os outros temas às favas e achei conveniente mencioná-lo aqui. Vejam, não tenho um pingo de lirismo para tratar disto, não por afetação, é porque não sei mesmo. Afinal, estes “súbitos” vêm subestimando descaradamente meus estudos, leituras, afazeres, disponibilidade e todas tantas que couberem na minha pacata rotina.
E, como a maioria dos casos que permeiam o campo emocional – portanto, neste ínterim, estou incluída na normalidade boçal desta sociedade –, o responsável por tal alarde é indiferente à minha existência, não é sensível ao meu interesse, sequer aos meus devaneios, tampouco aos meus sentimentos, menos ainda, se importa com qualquer um deles.
No fundo, queria ter uma sensibilidade mais ignorante, menos compreensiva e um tanto quanto adequada...