segunda-feira, 27 de março de 2006

Bom dia, leitores (vocês ainda existem?)

Notem que destino incrível: estou sem Internet. Redijo este texto de meu proto-apartamento em Campinas. Faz tempo que não escrevo em primeira pessoa no meu blog. Ele está completamente abandonado, resultado, claro, dos contratempos e favortempos da vida. Porque ela não é só feita de “contra” mas também de “favor” e, no caso desta terra que habitamos, os dois sentidos mais evidentes de “favor” podem ser aplicados.
Bom, como dizia, me deu uma vontade incontrolável de reativar este blog, mas para os que quase nada acessam – eles, sim, sabem – esta vontade é tão fugaz quanto o jornal do dia. Sobre o destino incrível, óbvio, este desejo surgiu quando os meios de publicar este post imediatamente estavam inacessíveis. Pois, para quem, assim como eu, já teve diversos lapsos de jejum virtual, o reloginho girando das lanhouses não nos deixam nem um pouco confortáveis para escrever qualquer coisa que seja (a não ser, claro, um email desesperado, uma mensagem de saudades, um comentário infame, uma notícia importante, um convite para sair e por aí vai).
Falando em escrever, lembrei-me de leitura e, por conseguinte, de cinema. Não, não. Não pretendo dissertar sobre as relações estabelecidas entre estes elementos, elas se deram por conta da ironia ou coincidência ou sarcasmo (daqueles que nos fazem rir) dos acontecimentos cotidianos.
Hoje estava a ler Machado de Assis e deparei-me com uma crônica – pela qual sou muito grata, diverti-me pelo resto do dia – que compunha regras de conduta para os freqüentadores de bonde. E lá se estabeleciam dez artigos para os usuários deste meio de transporte. Convido-os a lerem. Claro que não passa nem perto dos melhores textos do autor, mas garante boas risadas.
Enfim, de volta ao “causo”: depois de me esbaldar com os artigos, fui ao cinema. Como é típico de minha pessoa, se não se estender à maioria dos brasileiros, estabeleci uma rápida conexão de proximidade com uma senhora que também esperava abrir o cinema (sim, ainda existe isso, de esperar pelo filme do lado de fora e não dentro de um shopping).
A conversa tomou um rumo tão inesperado que ela já me dava e pedia conselhos sobre relacionamentos e não parava de falar. Tive que ser um pouco grossa para que ela fosse educada (que coisa!) com o restante da sala e mantivesse silêncio. Não pude conter aquele meio sorriso de canto de boca, sabem? Ela acabava de infringir o artigo V.
Machado tratava de bonde, mas essa raça de “amoladores” está em todos os lugares, principalmente, nos públicos.

“Art. V – Dos amoladores
Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-la minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repelindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.”


As pessoas dentro da sala acreditavam que estávamos juntas e isto me deixou um tanto constrangida. Ela carregava consigo aquelas sacolinhas de supermercado, daquelas mesmo, que, quanto mais você tenta não fazer barulho, mais a sacola emite um ruído constante e insuportável. E a mulher não parava de mexer! Não faço idéia do que ela queria ali dentro, mas chegou a ponto das pessoas lançarem aquele “ssshhhh...” constrangedor. Quase mudei de lugar, joguei meu corpo o mais longe que pude da senhora (dentro dos limites da cadeira, lógico), franzi o cenho, fiz gestos de inconformidade sutis e enrubesci. Era o mínimo que podia fazer para disfarçar a minha vontade de sair correndo dali. E o filme seguia...
No ápice da trama, naquele momento crucial, quando as relações abstratas do filme se encontram , escuto um barulho estranho e recorrente. Evito olhar para o lado, mas minha curiosidade leva-me a espiar a “vizinha” incômoda: ela lixava as unhas! E não aquela lixadinha para desfazer um lascado e impedir que seu dedo saia junto com a unha. Não! Ela lixava dedo por dedo, punha a mão na boca, depois na perna e ainda procurava o melhor lugar, entre as luzes da tela, para enxergar o resultado de seu ímpeto manicure.
Não obstante, minha adjacente, findada a sessão de beleza, tenta abrir uma embalagem de bala depois, claro, de pegá-la dentro da sacolinha insuportável. E assim começava a saga para desenrolar o doce e esta parte eu dedico ao professor Ênio.
Por um lapso qualquer, ela resolveu não querer fazer barulho e abria bala por bala – sim, foram várias – vagarosamente. Aquele ruído estendia-se por toda a sala e, mais uma vez, os olhares voltaram-se para nós e, mais uma vez, eu quase morri de vergonha.
Comecei a achar que era conspiração. Ela devia ser prima, tia, cunhada, amiga, vizinha, comadre, conhecida-da-feira, sei lá, de uma certa pessoa. Aquilo fazia parte de um plano maquiavélico para me espezinhar. Com sotaque de JM, aqui vai minha indignação: não é possível!
De volta para casa, comecei a pensar nos artigos que Machado poderia escrever para os “freqüentadores de cinema”. Nem ouso pensar em fazer algo sequer próximo ao do mestre, mas, como diz o D., dada a configuração geral do sistema você-não-merece-ver-um-filme-tranqüila, não fica difícil estabelecer alguns artigos básicos.

Geral
Não tente não fazer barulho. Se você tenta não fazê-lo, é porque sabe que ele vai acontecer. Portanto, se for inevitável, faça-o de uma vez.

Artigo I
Das embalagens
§1 É terminantemente proibido entrar com “sacolinhas” de supermercado.
§2 Fica vedada toda tentativa de abrir qualquer tipo de embalagem. Quem quiser fazê-la, faça-a antes. Calcule exatamente quanto irá consumir para que não seja preciso guardar o restante em “sacolinhas” insuportáveis ou tenha que apanhar mais dentro da bolsa, iniciando a saga dos “abridores (in)discretos de embalagens”.

Artigo II
Das conversas
(emenda do artigo Dos amoladores)
Quem quiser auxílio psicológico procure o terapeuta mais próximo e depois do filme.

Artigo III
Da caracterização espacial
§1 Não se deve exercer nenhuma outra função dentro do espaço cinemático que não seja destinada, exclusivamente, para a boa apreciação da obra. Salvas atitudes que sejam necessidades humanas como flatulência (desde que não causem odor e o barulho não atrapalhe); sede e fome (dentro dos limites do artigo II); ir ao banheiro (recomendo não fazer folias digestivas antes do filme); chorar e rir discretamente.
§2 É vedada qualquer atividade como manicure, pedicure, auxiliar terapêutico, farmacêutico (pois é, há quem indique remédios no meio da sessão), observador impertinente – o tipo pseudo-crítico –, auto-promoção, entre outras que não sejam estritamente necessárias ao que está dado: assistir o filme.


Há muitas outras situações que podem ser debatidas nesta Constituinte do bom apreciador de filme em salas de cinema. Aqui estão só algumas sugestões resultantes da experiência de hoje. Aceito mais artigos, todos podem participar desta Assembléia.
Por fim, deu pra sacar que vocês se tornaram meus “vizinhos”? Estou de apartamento novo e meio perdida pelo mundo. Agora salvo tudo isso em disquete e vou, desesperadamente, amanhã, domingo, procurar uma lan para postar. É improvável que eu encontre dada minhas andanças de hoje, sábado, a tarde pelo centro de Campinas. Nhunft, termino meu post por aqui, antes que eu comece outro assunto como boa “vizinha”, no sentido Machadiano, claro, dizendo: “que calor!” e, no caso de hoje, “que chuva, não?”.
Beijos a todos!

segunda-feira, 20 de março de 2006

Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém se acaba o sol, porque nascia?
Se formosa a luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Gregório de Mattos

sexta-feira, 17 de março de 2006


Quem você pensa que sou?


-- Mãe, vem cá! Olha lá!
-- Onde, filha?
-- Você não está vendo?
-- Não... mas o que você vê?
-- Tá lá em cima, olha! Mãe, voando...
-- Me aponta a direção
-- Lá no céu, perto das estrelas
Na noite de Natal, em 1989, eu insistia em mostrar para minha mãe o trenó do Papai Noel voando pelo céu. Nossa sala tinha uma janela enorme, daquelas que vão até o chão e um sofá em frente. Enquanto meus pais arrumavam a ceia de Natal, eu subi no encosto do sofá e fiquei admirando o céu. Dei um sobressalto e chamei minha mãe. Ela não via nada, mas ficava impressionada como eu descrevia cada movimento da ilusão capitalista pelos céus de Paulínia.
Em tempo, assim como todo ser humano normal de sete anos, eu tinha noção que aquele rapaz gordo, vestido de vermelho, com uma barba de plástico, um gorro preso com elástico, numa roupa de frio, suando feito um copo de água gelada na praia de Copacabana, sentado o dia inteiro no shopping, carregando outros infantes no colo, não era o Papai Noel. Afinal, o comércio não ajuda a reforçar esta crença. É exigir demais da ingenuidade de uma criança que ela acredite em Papai Noel vendo um em cada esquina. Enquanto um distribui bala, o outro desce de helicóptero, o outro passa correndo na rua com uma mamãe Noel gostosa, o outro tira foto, o outro fica na porta da loja, gritando: “Ohohoho compre aqui”, sem esquecer daqueles gordos, suados, estagnados o dia inteiro dentro do shopping (muitos pequerruchos até se assustam, saem correndo e choram por causa de uma figura que era para ser adorada por elas).
Por outro lado, a força da imaginação de uma criança pode superar tudo isto, assim como eu acreditava piamente na existência de um Papai Noel praticamente inalcançável. E meus pais reforçavam isto. Meu pai não fazia aquela cena clássica, na qual o pai feliz, se veste para a criança feliz, para entregar o presente feliz, a mãe faz um comentário feliz e o filho finge acreditar feliz. A minha imaginação me fazia ver além do que a mídia, a propaganda, o comércio me empurravam. Papai Noel não significava presente caro do cara gordo, suado, estagnado e mal-humorado do shopping. Ele significava que, por algum esforço pessoal – seja lá qual fosse –, eu havia cumprido minha parte durante todo o ano e, portanto, vinha me dar a recompensa com uma visita.
E a fé nesta figura era tanta que eu era capaz de vê-lo, trazê-lo para minha realidade. Ou seja, todos os esforços da propaganda passavam ao meu lado, na TV ligada da minha sala. Enquanto eu, de costas para ela, entrava num estado de êxtase por ter visto o "bom velhinho" despedir-se de mim, lá do céu.

Ana Clara Ferrari

quarta-feira, 15 de março de 2006

Tinha até me esquecido da felicidade em receber um comentário.
Estava há tanto tempo abandonado...
Acho que é o espírito de blogueira voltando a se arrebatar em mim :D

segunda-feira, 13 de março de 2006

Para D.

Complexo Épico

Todo compositor brasileiro
é um complexado.
Por que então esta mania danada,
esta preocupação
de falar tão sério,
de parecer tão sério
de ser tão sério
de sorrir tão sério
de se chorar tão sério
de brincar tão sério
de amar tão sério?
Ai, meu Deus do céu,
vai ser sério assim no inferno!

Por que então esta metáfora-coringa
chamada "válida",
que não lhe sai da boca,
como se algum pesadelo
estivesse ameaçando os nossos compassos
com cadeiras de roda, roda, roda?

E por que então essa vontade
de parecer herói
ou professor universitário
(aquela tal classe
que ou passa a aprender com os
alunos
-- quer dizer, com a rua --
ou não vai sobreviver)?

Porque a cobra
já começou
a comer a si mesma pela cauda,
sendo ao mesmo tempo
a fome e a comida.

(Tom Zé)

quinta-feira, 9 de março de 2006

Getúlio no dia de Dom Pedro

Sete de setembro. Cheguei num carro de campanha política, todo adesivado, com “40” e “Hamilton” para todo lado. A casa ficava em cima de uma montanha e, quando apontei no estacionamento, o senhor já me esperava na porta. Silvio Lazarini, 85 anos, de família tradicional italiana e figura ilustre na cidade de Pedreira. O motorista já me avisa: “Este senhor é o orgulho da nossa cidade. Fez muita história aqui em Pedreira”.
A casa era antiga, mas muito bem conservada. Ele sentou na ponta de uma mesa enorme, na entrada da sala principal, e eu sentei ao lado.
“Eu falo, depois você anota”.
Dia 26 de agosto de 1954, Getúlio Vargas se suicidou. “É o que dizem. Não dava pra confiar muito”, afirmou Lazarini. “Estava capinando a roça. Agosto é mês de seca e eu mexia com esterco, estava preparando para depois umedecer e vender. Minha mãe, já falecida, veio lá de dentro e me avisou ‘o presidente morreu’. Fui lá, ouvi o rádio e depois voltei pra roça. A vida continuava.”.
Sr. Silvio acompanhou o noticiário pelo rádio. “Tinha TV naquela época? Bom, eu não tinha. Eu fui ter a primeira em 69”, afirma. Lazarini levantou foi até uma outra sala, depois voltou e disse: “Eu acho que Getúlio era um bom presidente. Ele foi ditador por muito tempo, mas depois teve voto direto e foi eleito. Isto é sinal de que ele era bom pro povo. O povo votou nele porque gostava dele”.
Silvio Lazarini foi eleito vereador em Pedreira por três vezes, entre 1968-1972, 1984-1990 e 1990-1994. “Quem era pra assumir era Jango...o Goulart, mas ele tava no estrangeiro. Naquela época, o vice era eleito separado do presidente. E ele não era da mesma chapa. Daí colocou o (...) não lembro quem veio depois, não sei se era presidente da Câmara, do Senado, era alguém de autoridade. Depois fizeram aquele governo (...) Como é o nome mesmo?”. Sr. Silvio olha para minhas anotações e fica pensativo. Depois de um tempo, dirige-se a mim: “ Tem presidencialismo...”, eu ajudo: “Parlamentarismo?!?”. “Isto, isto. Puseram isto lá. Não sei se tava certo ou errado, porque a gente era muito distante. Eu ouvia o rádio e acompanhava as notícias. Não mudou minha rotina. O que eu senti? Decepção. Era um bom presidente”.
Onze horas. De onde estávamos, dava para ouvir as comemorações do dia da Independência que passavam na televisão. Na cozinha ao lado, sua mulher já estava terminando o almoço.
O senhor declara: “Antigamente, a gente tinha muito mais civismo. O povo ia pra rua, hasteava a bandeira, cantava o hino. Hoje, nem isto. Tenho uma coisa para lhe mostrar”. Ele se levanta, vai até a mesma sala que se dirigiu anteriormente, volta com uma enorme pasta preta na mão, põe na mesa e fala para eu ler. Era uma pasta nova, com plástico e, dentro, havia diversas partituras. Começo a folhear e me deparo com a canção do imigrante italiano. Lazarini, orgulhoso, termina a entrevista: “Noi siam partiti da i nostri paesi. Noi siam partiti co i nostri onori (...) merica, merica, merica...”.