quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Contrações

Chegou o momento em que é possível sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados e ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo: rachei. De um revertério compulsivo nas minhas entranhas, nasceu incontrolavelmente várias pessoas dilaceradas em pedaços espalhados pela minha alma. Não há temor, nem razão, só o grito da necessidade. Não dessas inventadas por aí, mas daquelas que saem lá do fundo, exatamente onde toda mulher se descobre mulher... e mãe: o útero.
Por um critério nada rigoroso, decidi contar que o nascimento se deu via uterina. Apenas para criar um paralelo biológico de uma implosão da alma, assim atribuo um caráter racional para este monte de micro-corpos que começam a ganhar vida própria, como se estivessem numa incubadora ou, num plano mais interior, criando raízes férteis em solo estéril. Nada a ver com o que realmente aconteceu, visto que muitos vestígios neurais, viscerais e racionais também foram encontrados no último corpo delito que meu super ego fez (detesto quando ele faz isto) em meu interior.
De qualquer forma, este aglomerado de pedaços de carne humana – espalhado pelo mármore frio e gelado do meu próprio eu – começa a borbulhar e a sacolejar intermitentemente deixando meu outro eu (sim, tenho vários) horrorizado. Este último eu, o apavorado, é o eu que todos acham que eu sou.
E como quem levanta de um sono profundo ou de um eterno esperar-desabrochar aquele monte de coisa amórfica começou a tomar forma – e forma de coisa.
Enquanto o eu – este aqui que vocês conhecem – vendo tudo isto, resolveu dar uma volta, fumar um cigarro, arejar as entranhas e calcular o ponto de fuga mais próximo, uma criança foi deixada no mármore frio e gélido cheio de pedaços pululantes de vida e energia. É ela quem vê tudo, com o medo numa mão e a curiosidade na outra. Estas novas coisas que – sabe a criança – tornar-se-ão pessoas rastejam-se, por enquanto, pela vil e cruel solidez de minhas edificações; e a infante assiste a tudo impassível.
Até que algum eu (ou a própria criança) não lhe atribuam nomes, estes embriões sofrerão todos os espasmos que algo sem vida e, por assim dizer, sem necessidade de piedade, pode sofrer e a minha imaginação é capaz de criar.
É assim, como toda dor do parto; e, como todo fruto do mesmo, as pessoas, se nascerem, terão seus cordões arrancados impiedosa e violentamente. De modo que adquirirão autonomia, vida própria e plena liberdade, sem vínculo algum com aquela que a gerou. Isto é perfeitamente possível, pois é uma liberdade e autonomia dignas das coisas que, apesar de existirem, não existem.
Por enquanto são coisas. E, por serem, já existem. Já têm verbo, faltam-lhes os nomes. Assim sendo, não existem. Se nomeadas, serão pessoas, voltam a existir, mas não serão necessariamente eus, deixando de novamente.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

O tempo cabe num ponto final
e o futuro é um monte de reticências jogadas no céu.
Como quem juntasse todo o tempo do mundo
na mão em concha
e assoprasse inadvertidamente todos os pontos finais
que se perdem reticentes no horizonte
Não adianta buscar
estão todos perdidos
Adianta, quem sabe, voar

sem vento
sem plano
sem fogo
sem casa
sem pai
sem mãe
sem mão
sem cão
sem sim
sem não
Sim, com asa
voar e voir

No instante em que o verbo
elE,
que se uniu à virgem vírgula,
você dominar


[exercício de preparação para leitura ou "homenagem a um livro não-lido" ]

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

No meio do caminho há duas mãos

Escrevo por medo das palavras e da ausência delas.
Escrevo pelo medo do silêncio reprimido e do verbo mal usado; do silêncio mal usado e do verbo reprimido.
Escrevo para capturar alguma coisa no caminho entre o coração e o cérebro. E no meio do caminho, há duas mãos. Uma pedra em cada uma.
Forço todos os elementos da inter-comunicação, nada eficiente, entre cabeça e lado-esquerdo-do-peito a descerem alguns centímetros em direção à ponta dos meus dedos e disparo todas as fúrias sem saber exatamente a origem delas.
Mas alguma coisa anda errada: pedras se digladiam no cérebro, o coração se preocupa com a sintaxe, e as mãos estão tão meigas quanto qualquer suspiro doce do primeiro amor de uma criança.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Entre dois infernos
Há um paraíso
Que a menina observa atrás da grade

Várias borboletas circulam por ali
Umas rápido, outras devagar
Algumas duram muito tempo
Outras só se sabem que passou
Pelo cheiro de pouco ar remexido

No centro do paraíso
Há uma deusa
Cercada pelas melhores flores,
plantas, águas, ares, cores e sabores
Um altar em que se impõe o totem
Rodeado das mais belas coisas do mundo

Já o resto do lugar carecia de cuidado
Como quem oferece tudo
E até o riso lhe é negado

Neste exato momento
A menina atrás da grade teve um sonho:

Tornou-se borboleta
atravessou os liames de ferro
e soprou de longe um gostoso ar de açúcar cândi
O pássaro reverencioso, antes prostrado diante do culto,
Sentiu naquela terna brisa, trazida pelo ocaso dos ventos,
uma felicidade tamanha
Como nunca havia sentido
Então ele tornou seus olhos para o céu
Sacudiu as asas
Alçou vôo e...

De repente, a menina acordou
com o estilhaço do medo dele batendo nas grades
O pedaço viera voando lá de alguma explosão
dos confins de um dos infernos

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Para Destino Certo,
"Está-se junto com a mulher que se ama, fala-se com ela. Então, semanas ou meses mais tarde, quando se está separado dela, volta à mente aquilo de que se conversou. E agora o tema está ali, banal, cru, sem profundidade, e se reconhece: somente ela, que por amor se debruçou profundamente sobre ele, sombreou-o e protegeu-o diante de nós, de tal modo que, como um relevo, em todas as dobras e todos os ângulos, o pensamento vivia. Se estamos a sós, como agora, ele jaz raso, sem consolo e sem sombra, à luz de nosso conhecimento"
Walter Benjamin, in "Rua de mão única"

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Paletó de bolinha amarelinha

Terminei de ler "memória de minhas putas tristes", do García Marquez. Se o fosse escrever, intitularia "memórias minhas puta tristes" e deixaria um traço do jargão deste meu século perdido e condenado. Um bom romance, daqueles que te incomodam na poltrona e te fazem revirar em todas as posições para encontrar um lugar confortável. Impossível, o desconforto está nos olhos, ou melhor, nas páginas quandos são encontradas por eles.
O autor trata do amor "e por mais que lidemos com esse sentimento como se fosse um paletó dois números acima do nosso, apenas ele e tão-somente ele, o amor, nos faz humanos..." escreve o "orelhista".
Incluo-me entre as pessoas que não conseguem vestir este paletó, mas, no meu caso, eu o acho pequeno. Dois números abaixo. De modo que todas as vezes que tento vestí-lo deformo-o. Um desastre: pula botão, esgarça costura, rasga tecido ou não passa nem pela cabeça. Se entra por um braço, não alcança o outro e, se com muito custo, consegue, fico presa entre meus próprios ombros. Haja esforço para tamanha peça, há quem diga (ou melhor, jogue-me na cara) que nunca vou vestí-lo enquanto estiver com o casaco grosso e espinhudo do meu orgulho. Ora essa, mal sabem eles que este casaco eu só visto em ocasiões especiais. E se, mesmo assim, com muita paciência e dedicação, consigo encaixar todos os meus membros neste vestuário tão esquisito, sinto-me nua como Ana Maria ao olhar-se no espelho, depois de entrar na cabine.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Dois hambúrgueres, sem alface, nem queijo, nem molho especial, muito menos cebola e picles num pão com gergelim
Detesto quem repete, quem recorta uma frase do texto e diz “adorei esta frase”. Sim, acabei de fazer o mesmo e eu posso me detestar por isso, não? Detesto quem não sabe o que dizer e se agarra às pílulas de auto-ajuda para sobreviver. Sim, eu faço isto, de vez em quando, e daí? Continuo não gostando das pessoas que fazem isto, como não gosto do meu eu desesperado quando não vejo mais o brilho dos olhos dele em mim.
Como defesa, eu analiso, disseco, destrincho, reviro e biopsio todas as entranhas dele. Nenhuma vírgula escapa-me, nenhuma metonímia, nenhuma metáfora, nada. Tudo nele está escrito em cada escolha que ele faz. Eu vejo até a reticência perdida na retina escura. Defino cada ponto final com qualquer hesitação e enxergo a conclusão do capítulo só de vê-lo dormir. Para cada canto que ele olha há um parágrafo, para cada gesto uma síntaxe e para cada silêncio uma obra enciclopédica de 16 volumes.
Daí aparece a mãe Dinah, retira uma frase de todos os meus escritos e acredita ter encontrado a solução. Não é bem assim, dona bruxa sabichona, seus astros não entendem nada de gramática. Eles não vêem que minha oração subordinada é dirigida aos céus e se perde na coordenação precisa das estrelas. Para entender meus sentimentos, é preciso encontrar o amor espremido em duas fatias grossas de ódio com intoleráveis advérbios, adjuntos, adjetivos, vocativos e todas as perfumarias sintáticas enroladas num canudinho e fincadas – de fora a fora – neste sanduíche indigesto com uma cereja-romance na ponta.

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

É muito fácil refutar minhas idéias. Facílimo. Até uma criança, em sua mais profunda inocência, desconstruiria, sem dificuldade, todas as minhas conjecturas acerca de qualquer coisa com a mais banal das perguntas. Simples. Meus textos são falhos. Como tudo é falho. Pensando sobre isto, tentarei justificar-me.
Antes, ponderações: não vou provar que meus textos não são falhos – portanto, se houve este lampejo, pode parar por aqui e aguardar outro post; esta justificativa será tão limitada quanto qualquer outra; o motivo que exporei aqui serve como mote para todos os escritos anteriores, presentes e posteriores.
A minha constatação partiu de uma premissa simples: meu pensamento está preso nos grilhões da linguagem. Estou ciente de que não há pensamento sem linguagem, e também de que o primeiro depende visceralmente da segunda. Explico-me: suponhamos que a defesa de qualquer “pensamento” meu fosse passível de exposição dentro da minha própria mente. Ou seja, todos os “ataques” a qualquer idéia minha se daria no nível (imaginário) do meu subconsciente; não seria necessário, portanto, transpô-la para uma linguagem “externa”, pois o debate seria “interno”. Se assim fosse, acredito que eu, ou até mesmo todo mundo, teria a inimaginável e praticamente inalcançável capacidade de defender rigorosamente – sem cair em contradições, reducionismos, exageros metafísicos ou pragmáticos, escassez teórica, etc – todas as suas idéias e torna-las-ia irrefutáveis . No entanto, daí a genialidade de poucos autores, o cerne do raciocínio está em justamente fazer esta transposição entre o pensamento e a linguagem. E quanto mais clara é a passagem, maior a capacidade sintética do autor.
Quanto a mim, ainda sinto-me (e assim estou) presa pela jaula da linguagem. Raras vezes consigo abrir uma fresta e libertar algum pensamento, mas está tão putrefato que, não é difícil, quando sai, já não faz mais sentido algum. Como isto se chama? Nua e cruamente: ignorância.
Imaginemos que há um momento anterior à transposição. Uma espécie de reserva de “pensamentos” que qualitativamente não representa nada, pois não passa de um esboço estúpido, um zigoto amorfo. À medida que as hastes da linguagem vão sendo retiradas – ou seja, utilizadas –, elas oferecem forma àquele potencial hiberno (lembrem-se que, como “zigoto”, sua capacidade de reprodução e crescimento é intensa) e luz para o seu desenvolvimento, já que o tira da “gaiola”.
Para entender a complexidade deste nascimento, é-me necessário também salientar a disposição das hastes que compõe a jaula: elas não são arranjadas de forma vertical e horizontal organizadas perfeita e coerentemente. O entrelaçamento entre as diferentes variáveis que compõe a linguagem cria um emaranhado complexo de significantes, significados entre jogos semânticos que, por muitas vezes, a retirada de uma simples “haste” depende da articulação e, portanto, conhecimento de várias outras “hastes”. Todavia, a consciência prévia de “hastes mestras” pode ajudar e muito a desencadear uma série de desobstruções em larga escala, como se encontrássemos o fio exato para desfazer uma longa meada.
Há exceções, claro, como alguns pensamentos cuja estadia deve permanecer “fermentando” e hibernando na jaula para sair com mais potencial ou, no mínimo, com maior poder de síntese. Afinal, abrir a jaula para um monstro raivoso, ainda torto, com cara de Fred Kruegger, instinto de Jack, o estripador, é preferível manter a jaula trancada para lapidar tamanha estupidez. De resto, muitos de meus pensamentos ainda borbulham dentro da jaula, poucos são os que saem, pois minha linguagem é muito limitada e não quero arriscar um colapso absoluto das poucas idéias sãs que brotam de mim.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Menina estranha

No segundo ano de faculdade, minha maior inquietação era saber se tudo aquilo que interpretamos de um determinado livro, música ou poema – geralmente clássicos – o autor realmente pensou para escrever. As respostas variavam de acordo com a aproximação espiritual e afetiva das pessoas questionadas com o autor ou do “status intelectual” da obra na sociedade. Por exemplo, um Charles Baudelaire, com certeza (segundo algumas pessoas que possuem certa autoridade no assunto), pensou, re-pensou e re-re-pensou em cada artigo, adjetivo, advérbio, metáforas e metonímias; Chico Buarque, idem; João Cabral, idem e etc. Como disse, varia. Certas pessoas não acreditam que Victor Hugo tenha tanto “status” (desculpe, mas falta-me vocabulário para definir uma posição não limitada perdida numa nuvem grosseira de ego, mesquinharia, esnobismo e, raras vezes, crítica) assim como Fernando Novais e outras figuras não tão conhecidas assim. Há também quem tenha me dito que este questionamento é irrelevante.
Eu não tenho a mínima autoridade e, tampouco, autonomia no assunto, portanto só colhi opiniões, impressões e Pilatos – aqueles que dizem “eu acho porque gosto” e lava as mãos. O que diminuiu minha ânsia e, conseqüentemente, trouxe-me uma explicação um tanto pertinente, foi uma palestra.
Não necessariamente tu-do o que autor escreve, ele pensou numa interpretação segunda, terceira ou quarta. Porém, o trabalho de quem analisa minuciosamente um texto não é em vão, afinal, de uma forma ou de outra, o autor/obra é a expressão do seu tempo. E, a partir da imparcialidade que a distância do tempo e da própria obra (por não ser o autor) permite, podemos encontrar dados do inconsciente coletivo da época que não passaram, necessariamente, pelo crivo racional do escritor. Sendo assim, ao escarafunchar textos literários, da lagarta que come o tempo, pode nascer uma interpretação-borboleta e, melhor ainda, que voe sozinha.

Cara estranho
Dado isto, pus-me a pensar sobre os considerados “lixos” em massa que a nossa sociedade produz atualmente. Afinal, convenhamos, analisar textos e obras para entender um século de explosão intelectual é uma coisa, revirar as carcaças da produção cultural deste início de século “perdido” e “condenado” é outra. Sim, que me chamem de abutre, mas dirijo-me às produções terrenas com vontade, curiosidade e uma certa esperança. Pois a nostalgia pedante, a arrogância do culto e a soberba intelectual causam-me náuseas muito mais profundas de modo que, nem com esperança, vontade e, muito menos, curiosidade ouso bater minhas asas pretas em sua direção.
Isto posto (bingo para quem conseguiu ler até aqui), posso falar a respeito da música “Cara estranho” do Los Hermanos. Não estou aqui para julgar a qualidade musical, muito menos, a capacidade do compositor e, menos ainda, venerar ou subtrair qualquer atributo (bom ou ruim) da obra. Logo que ouvi, apesar de não ter entendido muita coisa além da primeira estrofe, percebi que há algo notável e latente: a música trata do indivíduo da sociedade moderna (se é eficiente ou não, deixo para vocês). Escolhi alguns trechos:

“Olha lá, que cara estranho que chegou
Parece não achar lugar
No corpo em que Deus lhe encarnou
[...]

Exibe à frente o coração
Que não divide com ninguém
Tem tudo sempre às suas mãos
Mas leva a cruz um pouco além
Talhando feito um artesão
A imagem de um rapaz de bem”


Já que autor/obra é expressão do seu tempo...

“Cara estranho...” faz referência à esquizofrenia, várias de nossas relações humanas, atualmente, são marcadas por algum traço esquizofrênico. O fato de “não achar lugar...” é uma das principais características do neurótico que não se encontra em si mesmo. Aliás, em outro trecho a música também diz “Periga nunca se encontrar/ será que ele vai perceber/ que foge sempre do lugar”.
Quando o autor diz “no corpo em que Deus lhe encarnou”, ele já aponta a influência da Igreja Católica (ou qualquer outra instância religiosa que tenha Cristo como crença, pois, mais à frente, ele se refere à cruz) na formação do indivíduo. No trecho “exibe à frente um coração”, podemos encontrar referência ao amor, sim, mas daqueles enlatados que se compra na loja Claro por R$ 49,90 com mil reais de ligação grátis como a própria música deixa nas entrelinhas. “Que não divide com ninguém”, narcisismo, ou seja, o amor a si mesmo. Isto soa familiar, não? Podemos todos comprar na loja Claro, mas a nota fiscal vai no seu nome, sa’qualé?
“Tem tudo sempre às suas mãos”, ora essa, isto dava um livro. Não tivemos um século com tantas, hum, “facilidades” em vários aspectos. Para os pouco abastados, crédito em abundância. Para os muito abastados, poder sobre os outros, cada vez maior. No plano tecnológico, nunca pudemos fazer tantas coisas com apenas um clique. Nunca foi tão fácil conseguir mulher, jogo, dinheiro e produto. Tudo virou mercadoria e, pior, comprável com cartão de crédito. Quanto aos nada abastados, tudo está negado desde que o capitalismo ascendeu.
“Mas leva a cruz um pouco além”. Arrá! Este trecho é um dos que mais gosto. O capitalismo é perverso, mas as pessoas não podem ser ou, pelo menos, parecer. Neste ponto, entra o ideal de auto-sacrifício e filantropia católica.
Está implícito que o cara estranho carrega uma cruz seja ela da sua própria existência, ou do peso social que carrega cada vez que compra um produto do shopping, ou da Igreja que trabalha o sentimento de culpa e pecado constantemente, ou, estrito senso, a própria cruz de Cristo. Esta linha de raciocínio segue ao longo do trecho “talhando feito um artesão”. A oposição ao que é industrial – “homo-faber” – remete o indivíduo a um estágio anterior da mercadoria, da indústria, enfim, àquele romantismo da produção artesanal “ingênua” e familiar. Ao talhar, com as mãos de um artesão, “a imagem de um rapaz de bem”, a música conclui, neste período, a formação do indivíduo no plano moral. Se o indivíduo tem que talhar esta imagem, isto significa que há um elemento de força contrária perverso e mal, no caso, o capitalismo ou a própria essência humana. Pois, de uma forma ou de outra, a música esclarece que este elemento contrário é uma “cruz” a ser carregada imbricando assim bem e mal, numa relação ambígua e dialética.
Deixo com vocês a segunda estrofe – também muito interessante. Posso adiantar que fala sobre o esforço do homem em relacionar-se socialmente, sobre a influência da TV (das imagens construídas que ditam comportamentos de massa) e otras cositas más.

Aumentem o som!

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

De volta à civilização, um presente de final de ano
Eu gosto desta foto. De um lado, no primeiro plano, São Paulo. Do outro, aquela estradinha ao fundo, Minas Gerais.
Sempre gostei de limites: de tê-los e de superá-los. A geografia é um ótimo exercício e um dos quais eu mais me divirto. Conhecer rios de fronteira, estradas limítrofes, pontos zeros, divisas entre países, estados, municípios -- estes últimos nem tanto, dadas minhas andanças municipais rotineiras -- é programa de satisfação garantida. Numa abstração maior, ver o ponteiro maior do relógio arrastar-se ansiosamente em direção à zero hora do dia1 de janeiro também causa-me um certo êxtase inexplicável. Não que em algum lugar de minha mente tudo isso não passe de construção massificada para garantir esperança num mundo tão condenado como este, mas, como uma espécie de auto-alienação para auto-enganação, eu levanto meu copo de champagne e faço promessas de um ano melhor.
Bom, de lá para cá, daqui para lá, tanto faz. No limite, a graça é ir e vir sem saber exatamente onde estamos, mas com a precisão que a localização nos permite. Divirtam-se com o clima da foto que, por sinal, o dia estava maravilhoso. Um presentinho de final de ano para perdoar a ausência (sentida será?) e prometer voltar à produção bloguística assim que desfizer minhas malas. Quanto a mim, estou perdida em algum canto do mundo ou da foto, mais uma vez, tanto faz.