segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

O poder da criação não é tão "ÃO" assim.

A minha angústia de escrever é escolher. Temos que escolher o cenário, o estilo, o tamanho dos parágrafos, a personalidade das personagens, delimitar o tema, as descrições, a relevância, as atitudes, os gestos, os movimentos, as metáforas, as figuras de linguagem, a vírgula, o ponto, o ponto e vírgula, exclamação, travessão, tristeza, alegria, morte, vida, nem sempre consciente. Tudo isto tem que se articular e isto angustia-me. Sempre pergunto a mim mesma: por que tal personagem será assim? Por que ela vai falar isto? Por que descrever tão minuciosamente esta porta, este objeto, esta paisagem é relevante? Por que descartei tal descrição? Por que eu não fiz referência, por exemplo, ao tipo de chão que tal personagem passa na cena mais importante do texto? Por que vou dar "voz" a alguém neste trecho? Por que sou onisciente (ou não)? E se eu quiser que em cima da mesa da protagonista tenha uma tesoura? Ou um lápis? Ou nada? Por que não a coadjuvante? Por que eu não quis escrever isto e quis escrever aquilo?
É por essas e outras que escrever, para mim, é uma aventura. É certo que isto causa um atraso imenso, nunca consegui escrever, por exemplo, uma história grande o suficiente ou como eu gostaria. Sempre esbarro nestas coisas, fico exercitando minha liberdade "criativa" (não no sentido de auto-elogio, mas do poder que todo ser humano tem de inventar uma história banal, ou seja, de fazer escolhas) tirando e pondo coisas, diálogos, interferindo em destinos, construindo mundos, reinos, cidades, mares, planetas, destruindo-os, reconstruindo-os. Crio personagens, decido idade, tamanho, cor dos olhos, comportamento, índole (ou falta de), formação. Ou seja, tudo. É mais que o poder divino praticamente, pois eu - como qualquer escritor - decido exatamente tudo. Bom, devo ter acabado de cometer uma heresia sem tamanho, a não ser que Deus tenha controle sobre o comportamento, formação, atitudes e pensamento de todos os seres daqui debaixo (até sobre os que são contra Ele), retiro o que disse.
Certa vez sentei para escrever uma história. O texto até que flui, as idéias até que vêm, mas eu não resisto em inserir ou retirar um objeto, em trocar uma fala, em desvirtuar completamente o destino já estabelecido, remexo, reviro, não gosto, tiro e, enfim, a não ser que tenha um objetivo pragmático (artigo de jornal, blog, trabalho de escola etc) posso sair de uma trama no século VII a.C a um romance policial no século XIX. Não que eu tenha capacidade para fazer nem uma coisa, nem outra, mas fico mastigando este monte de variáveis e isto me angustia profundamente. Por que falar de uma coisa, se eu posso falar outra?
Angustiante, mas desafiador. Há uma seqüência de cenas no filme "Buenos Aires 100Km" que me é particularmente perfeita: o menino-protagonista está a escrever um conto e o diretor mostra, na tela, a história que o menino conta enquanto este redige. Para cada decisão acerca do "romance" do menino, a história muda. Ele escreve (não me lembro exatamente): "Era uma vez um monstro que chegou à pé numa casa..." e aparece a cena do monstro. Ouve-se o barulho da borracha no caderno, o menino fala: "Não! Um monstro que chegou de bicicleta..." a cena volta e aparece a mesma coisa, mas o monstro de bicicleta. A seqüência é feita várias vezes, em vários trechos do conto e é divertida, um tanto engraçada (descrever perde a graça). Enfim, é isto que acontece. Assistam, recomendo.
Voltando, num segundo nível, quando a gente - no meu caso, muito sofridamente - consegue fazer a trama fluir, sem o desespero incontrolável de tomar o poder da caneta e mudar tudo, as personagens, a trama e tudo mais aquilo que você escolheu começam a tomar vida própria. Outra angústia. Por mais que você queira dar um destino nefasto ou cristão, algo controla os diálogos, as descrições etc etc... como se o seu subconsciente (ou alguma instância desconhecida) disesse: "sai daí, agora é a minha vez". Já matei personagem sem querer, já fiz a minha criação tomar atitudes inpensadas, incalculadas, já suicidei minha melhor personagem, já fiz o impiedoso ter perdão, o sertão virar mar e o mar virar sertão; já me prendi em quartos escuros, já atravessei o oceano, sem querer (por isto acho que cometi uma heresia lá em cima). E você lê, lê, lê, quer mudar e não muda. Que saco. E brigo: por que você fez isto, personagem estúpida? você é louca? Para onde você vai? Não fala isto! Não faça isto! Não faça aquilo! Pronto, já foi, já era. Eu não sou mais livre. O tal peso, as tais camadas, o tal desconhecido e todas estas variáveis, elas, sim, me escolheram.
O que eu faço? Se eu pudesse, como o Criador veio para a terra, enviar-me-ia para dentro de um monte de páginas, tornar-me-ia, então, personagem de mim mesma, e, portanto, tiraria da mão daquele cretino filho-da-mãe que eu criei a arma com a qual ele ia se matar.
Como não dá, destruo e queimo tudo, ou melhor, deleto e arranco até da lixeira. Nem como lixo servem minhas histórias.
(Não mesmo: sem auto-piedade, falsa modéstia, sem estas coisas de joguinhos hipócritas).

4 comentários:

Anônimo disse...

Ana ex machina, mas nem tanto. hehe

Anônimo disse...

Um dia... quem sabe...
arranjo uma saída melhor ;)
Beijos

Thiago Borges disse...

Ana Clara

Interessante: poder e criação...
Não se angustie. São apenas palavras (lembra do Bee Gees? ahn? ) metidas a alguma coisa...Barbas diria que é tudo coisa do tal "discurso dominante". Já personagens da TV do século XXI dizem "faz parte". Foucault diz que existem palavras e "coisas". Habermas prefere discursar em inglês com medo de ser mal interpretado em alemão...ou tem preguiça mesmo, vai saber...
Agradeço os comentarios e tenho certeza que iremos debater mais e mais por aqui e em terras facampestres.
Luz Sempre

Thiago

Thiago Borges disse...

Ops. Tambem deixei links do teu blog nos blogs...bjos