domingo, 27 de agosto de 2006

Conformação alfabetizada

Uma mulher -- estereótipo da empregada doméstica-- começa a testemunhar sobre os inumeráveis benefícios de aprender a ler e a escrever: "Agora, eu posso ler as receitas da minha patroa e fazer tudo que ela gosta. Ninguém precisa mais me ajudar..."
Um homem, caracterizado de porteiro de edifício de luxo, segue na mesma linha: "Agora, posso ler as correspondências e entregá-las exatamente ao seu dono, sem problemas. Até sei anotar recado!"
E assim termina as propagandas da campanha de alfabetização solidária. Ninguém vai se alfabetizar para mudar de posição, para voltar aos estudos, para entrar numa faculdade, para aperfeiçoar o raciocínio, nada neste sentido.
O aprendizado é para servir melhor os patrões, afinal, "vocês, analfa, não conseguem nem anotar recado, nem fazer um bolo sozinhos! Bando de incompetentes. Mas nós, pessoas muito legais, oferecemos-te a oportunidade de serem empregados mais eficientes, pedindo, pela televisão, que os teus patrões ajudem a nossa campanha". Uma espécie de manutenção qualificada do status-quo.
É mole?
Uma campanha, por uma causa tão boa, enviesada desta forma, é revoltante.

4 comentários:

Anônimo disse...

Mas é assim, se dá liberdades físicas para se conseguir mais controle mental.

Anônimo disse...

Já havia esquecido... Belíssimo blog! Tornarei a leitura freqüente.

Ana Clara disse...

Olá, Bruno. Pois é, e isto é mais perigoso que ditadura. Trata-se de um controle mental cada vez mais complexo, articulado, eficiente e subjetivo, sem uma representação física, o que dificulta ainda mais a constatação dos sintomas e o despertar do sentimento de superação.
Beijos

Ana Clara disse...

Obrigadíssima! Fico contente em saber que gostou. Poucas pessoas incluem-se nesta categoria...
No mais, sinta-se à vontade
Abraços