quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Juventude


Tenho medo da minha velhice. Não estrito senso, lato mesmo. Não me refiro à mera passagem dos anos refletida em meu físico ou em qualquer outra pessoa, mas, sim, a vetustez da minha geração. Não é preciso muito para entender o abismo mental em que estamos inseridos.
Há quem diga, lógico, que o quadro catastrófico já estava montado há mais de dois séculos; outros que foi no século passado; outros desde que alguém acreditou na idéia de propriedade; outros desde que o homem se entende por ser social; outros juram que foi o golpe de 64, maldito golpe, se não fosse ele...; para além das conjecturas sobre o ponto de virada (se é que existia um mundo-maravilhoso anterior sobre o qual os mais velhos tanto falam) uma coisa é certa: agora, a versão é intensamente piorada. E, se isto ocorre na juventude, o que esperar da velhice da minha geração?
Vejamos um exemplo: Fernando Henrique Cardoso. Como intelectual, é indiscutível. Na juventude, diz sua bibliografia, lutou pelo avanço dos direitos políticos, sociais, participou do MDB, estudou, foi ativo na política (entendida como sistema de pressão para fazer-se ouvir na classe dominante, no caso, a ditadura). Depois que envelheceu, atingiu o poder e pediu, solenemente, para todos esquecerem o que havia escrito. A despeito da sua própria história, pediu: esqueçam, simplesmente, “esqueçam o retorno”. Não diria c’est la vie, mas c’est Brasil. O problema aqui não é o político que ele se tornou, o presidente que foi, nem o pedido que fez, mas a posição que ele tomou. Se, com uma história de luta, participação, inteligência que Cardoso teve (e tem) sua atitude, depois de “amadurecido”, foi abandonar a memória e viver o presente, o que dizer da senilidade da nossa juventude? Nossa geração já nasce sem história. Não vai ter nem o quê pedir para esquecer, não fez nada mesmo.
Claro, há exceções. Posso citar diversos “senhores” como o pai da minha amiga (já citado neste blog) que passou pela ditadura como o melhor dos mundos; lê Veja; é refém do cartão de crédito, do último celular high-tech, do carro nova geração; acha todos os “Fernandos” o máximo: Fernando Henrique, Fernando Collor, Fernandinho Beira-Mar e, claro, que todas as desgraças do país são culpa do Lula. Ou será que este tipo já tinha virado regra? De todo modo, seremos a versão ultra-piorada de uma versão já e infelizmente piorada.
Deixemos os exemplos de lado.
Às vezes, eu costumava dizer que a geração de 84 foi a última que teve infância. Não errava, só faltou aprofundar mais e incluir quesitos mais relevantes que, por sua vez, definharam vertiginosamente da minha geração em diante. Sim, como sempre, há aqueles que são exceções mas, a partir dos oitenta-e-quatrianos (um pouco mais ou um pouco menos), começaram a tornar-se regra.
Minha preocupação intensifica-se quando leio Ítalo Calvino (aliás, foi a partir deste trecho abaixo que me inspirei para este post).
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Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais.

De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente.

Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmo (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo.
Portanto usar o verbo ler ou verbo reler não tem muita importância.
“Por que ler os clássicos”, Ítalo Calvino

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Lembro-me do axioma da juventude de décadas atrás “não confio em ninguém com mais de trinta anos”. Um ato corajoso, expressão de autonomia, de rompimento com valores tradicionais e todo um conjunto de idéias pululantes do período. E daí? Eu confio em gente com mais de duzentos anos! Aliás, eu desconfio mesmo é de todo mundo, principalmente, de quem tem a minha idade ou inveja-a.

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Ana! Obrigada por sua visita e comentário, principalmente porque me fez conhecer seu blog. Eu não tenho medo da velhice, tenho medo de ficar velha e doente. É de doença que tenho medo e me cuido bastante. E, Calvino tem razão: não se lê o mesmo livro duas vezes.

Anônimo disse...

Seja muitíssimo bem-vinda, Lili.
Também tenho medo da doença, mas não de ficar velha. Quanto à velhice, ela me preocupa por se tratar, como atualmente se diz, de "investimento a longo prazo". Obstáculos do progresso.
No mais, viva Calvino! E viva você também por ter me dado a honra de seu comentário.
Abraços!!!

Anônimo disse...
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