terça-feira, 15 de agosto de 2006

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa

__Exercício__

Existe uma técnica por meio da qual é possível perceber com quantas mãos tocam-se uma música exclusivamente de piano. Na verdade, eu estou elevando a categoria, não é uma técnica com toda rigorosidade que esta palavra pode requerer, mas um afinamento auditivo peculiar, um dom que não necessariamente é restrito a músicos, ou a quem já fez aula de música. De qualquer forma, quem já freqüentou uma escola de piano, como é o meu caso, adquire esta habilidade.
Como todos sabem – se não, passam a saber agora – eu perdi uma das quartas partes do nível de audição na infância. Portanto, possuo uma certa relação visual com o som; desenvolvi, digamos assim, um sentido meio sinestésico, por meio do qual não sei diferenciar os limites de uso da vista em relação à audição considerados normais numa pessoa saudável. Sem dramas, é praticamente imperceptível e não há problema algum.
Há uma música, que adoro muito, cuja composição é só piano (“Comptine d'un autre été L'après Midi”, de Yan Tiersen). É incrível como consigo “ver” a movimentação das mãos e, principalmente, quantas trabalham na canção, no caso, quatro. Como se descobrisse a “verdade” por detrás da obra, ouço-a diversas vezes e sinto um prazer em parte egoísta, em outra de superação. Egoísta por achar que só a alguns é delegado o direito de ter esta “visão”, fato que perpassa, de certo modo, pelo malfadado sentimento de superioridade cujo resultado, se não bem administrado, é abominável. Superação por, ao ter em meu (in)consciente esta deficiência, poder “sentir” a música em sua “totalidade” – visto que, em relação aos normais, minha percepção estará sempre com o botão de volume algumas voltinhas para baixo.
Estive pensando, se elevarmos este quadro para uma outra escala, mais abrangente, teremos um cenário interessante.

Sem romantismos, nem melodramas, consideremos a vida como a execução de uma música. Execução nos dois sentidos: de “levar a efeito” e “cumprimento de uma sentença”, no caso, a morte. Afinal, “viver é morrer”. Alguns tocam a vida como uma valsinha chata e repetitiva; outros como uma verdadeira sinfonia alternando picos de tristeza, notas graves; silêncio absoluto longo e curto; alegria, notas intrépidas; sonatinas, loucura, sem, no entanto, perder a harmonia total do caráter mesmo que, aos olhares abstratos, estas alternâncias determinem uma essência corrosiva (mera falácia); outros, ainda, são completamente desafinados. E tal desafinação, muitas vezes, cria uma saga irreverente, uma harmonia peculiar que só é descoberta quando se faz o silêncio; e assim por diante. Para além destas comparações um tanto óbvias e batidas, está a própria construção da moral e da percepção do tempo por meio da música cuja relação Mann faz perfeitamente na fala de Ludovico Settembrini:


“...[Há] um fator incontestavelmente moral na natureza da música; a saber, que ela mede o curso do tempo de uma forma especial e cheia de vida, e assim lhe empresta vigilância, espírito e preciosidade. A música desperta o tempo; desperta a nós, para tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta... e portanto é moral. A arte é moral na medida em que desperta. Mas que sucede, quando ela faz o contrário? Quando entorpece, adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe perfeitamente agir como ópio. [...] O ópio é uma obra do Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil. [...] Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita” A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

Então, temos moral, tempo e vida. Ora essa, no que diz respeito ao espírito, temos os elementos necessários para uma reflexão acerca de qualquer coisa, em qualquer ordem. Veja, até para se chegar à amoralidade, é necessário tempo e vida. Neste caso específico, o item moral pode ser “retirado”. Para todos os outros, ou ele é atacado, ou é defendido, ou é relativizado, e, de uma forma ou de outra, é tratado.
Agora, suponhamos que é possível para alguém visualizar quais são as “mãos” e de que forma elas atuam na composição daqueles elementos constitutivos de sua própria personalidade – como “essência” subjetiva – e existência como ser físico. Parece-me que Nietzsche responde quem é o alguém capaz de enxergar esta movimentação: os espíritos livres.


"Em geral, todo progresso tem que ser precedido de um debilitamento parcial. As naturezas mais fortes conservam o tipo, as mais fracas ajudam a desenvolvê-lo. – Algo semelhante acontece no indivíduo; raramente uma degeneração, uma mutilação ou mesmo um vício, em suma, uma perda física ou moral, não tem por outro lado uma vantagem. O homem doentio, por exemplo, numa estirpe guerreira e inquieta, poderá ter mais ocasião de estar só e assim se tornar mais tranqüilo e sábio, o caolho enxergará mais agudamente, o cego olhará para o interior mais profundamente, e em todo caso ouvirá com mais apuro” Enobrecimento pela degeneração, em Humano, demasiado humano,de Friedrich Nietzsche


Por meio de uma limitação física ou moral, o indivíduo pode progredir no campo do espírito e, desta forma, desenvolver a capacidade de visualizar os movimentos que entoam nas esferas da sua formação. Veja, o espírito livre, dependendo do nível de argúcia, é capaz de identificar, além do modo, QUAIS são as notas tocadas – da tradição, da razão, da emoção, do pudor, etc. Isto, diz Nietzsche, gera um ser superior. Superior no sentido de que adquiriu esta habilidade de “ver” a maneira pela qual a música é tocada. Este fato, por sua vez, ganha ares de “descoberta da ‘verdade’”, sem, no entanto, sê-la absolutamente. Contudo, o espírito livre possui esta debilidade física e/ou moral, logo, esta “visão aguçada” impute-lhe o prazer da superação de suas próprias limitações tanto objetivas quanto subjetivas, tanto inconsciente quanto conscientemente.
Apesar da astúcia e do refinamento destes espíritos, ainda falta muito para descobrir QUEM está por detrás de toda esta melodia, por enquanto, os créditos ficam para a Verdade, outro Pacu da sociedade.

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