quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Enigma

Não. Não vou lançar um desafio porcaria de “o que é, o que é”, nem propor uma pergunta existencial de cunho altamente filosófico (se existencial-filosófico não for pleonasmo), tampouco esperar que entendam tudo o que escrevo, mas não resisti à tentação de discorrer sobre algumas observações.
Há certas peculiaridades na linguagem que nos permitem escrever sem ter escrito e dizer sem ter dito. Não sei fundamentá-las com argumentos assaz consistentes – espero que um dia possa –, muito menos descrevê-las aqui, nua e cruamente, já que seria preciso explicitar o dito não-dito e, pior, escrever o não-escrito. Mas, tentemos.
O princípio é semelhante ao do mecanismo de olhar uma imagem, ou seja, o mesmo processo do ver sem ter visto. Na “carta sobre os cegos”, de Diderot, é explícita a possibilidade de um cego de nascença conceber figuras geométricas em sua mente. Se elas se assemelham ou não ao que realmente “vemos” é outra história. No entanto, “ver o que realmente é” não importa muito, principalmente no que diz respeito a enigmas, coisas não-ditas, não-escritas e afins. A questão é que o cego “vê” uma figura com os mesmas características e princípios geométricos-matemáticos mesmo sem ter visto.
Caindo para o senso comum, também podemos trazer aqueles fenômenos de força da crença em que os indivíduos, dotados de alta carga emocional, declaram enxergar aparições, luzes ou qualquer coisa do gênero, que escapam às pessoas que não se encontram no mesmo estado de pertubação.
Dito isto, as coisas escritas e ditas seguem a mesma linha. É claro que nesta analogia perde-se muito, pois são formas de comunicação com funcionamentos e conexões muito díspares, mas o processo de “ocultamento”, ou melhor, não-explicitamento é o mesmo. Portanto, somos capazes de capturar diversas interpretações não-verbalizadas que se encaixam perfeitamente nas suas respectivas formas de expressão – escrita ou falada – como o cego vê uma figura com os mesmos princípios matemáticos.
Tá, isto não é nenhuma novidade, mas o que mais me atrai nesta explanação toda é o que escrevemos sem ter escrito, intencionalmente. O zênite desta qualidade está restrito aos poetas, aos melhores poetas. E, se considerarmos o plano da sensibilidade emocional feminina, podemos dizer que somos as leitoras que mais encontram não-escritos e, principalmente (para horror do sexo oposto), não-ditos. Isto não significa, necessariamente, uma superioridade, tampouco uma inferioridade, apenas uma constatação. Apesar desta imparcialidade um tanto falsa de minha parte, não para o lado feminino, mas para o lado masculino, a questão dos gêneros torna-se um tanto irrelevante para o trabalho do enigma linguístico. Uma qualidade excepcional presente apenas em alguns e algumas que, sem sombra de dúvida, não deixam de ocupar minha prateleira e meu browser.
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O que ouviu os meus versos disse-me: Que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, ninguém

Porque todos amam as flores por serem belas,
[e eu sou diferente.

E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra,
[mas eu não.

Eu amo as flores por serem flores,
[directamente.

Eu amo as árvores por serem árvores,
[sem o meu pensamento.

Fernando Pessoa

5 comentários:

Anônimo disse...

Oooo bonitinha,
fala de amor, mesmo que seja só no último parágrafo.
Assim vc intimida... não sei o que falar ;))
Beijos

Ana Clara disse...

Nossa, eu tentei falar de amor o tempo todo... quer coisa mais não-dita, mais não-escrita do que isto? A despeito mesmo dos milhares de escritos sobre este assunto, a melhor parte está nos "nãos" destes próprios escritos. Tá que um "eu te amo" e afins sempre caem bem (e me encanta), mas isto todo mundo diz e pra qualquer um, ultimamente.
E, ah, j.p.f, você intimidado? Faça-me o favor, né!! Até parece que não é o meu maior rival nas discussões (um rival muito interessante, por sinal)... aqui tudo pode ser mentira de cor profunda.
Obrigada pelo comentário :D
Beijos

Anônimo disse...

Não sei se fico lisonjeado ou intrigado com o seu "elogio".
De todo modo, obrigado e, "claríssima", vc não foi nem um pouco clara no quesito "estou falando de amor, gente".
Aliás, como tu não és na maior parte do tempo (em relação ao campo amoroso). Mesmo assim, continuo te entendendo e, justamente por isto, não concordo com muita coisa que diz. Mas devo retribuir o "elogio" e dizer que você não é fácil, não. E isto te faz cada vez mais encantadora.

Beijos inimigos

Anônimo disse...

Ah, já ia me esquecendo:
colocar um poema do Fernando Pessoa não adianta muito, viu?
Não estou desmerecendo o autor, nem você. Só deixa a coisa enigmática demais, quase incompreensível.

Se não for pra Paraty no feriado e desgrudar um pouco desses livros, vamos pra bebelança e sem chocar a galera do bar! Hauhuauhau

Abracitos, muchacha

Ana Clara disse...

Tá, a gente discute isto depois.
Leva a tua girlfriend, a Má é das nossas!
Barão ou Cambuí? Liga.

(eita, que isto virou um misto de chat com email :PPPP)

Beijos